Nos litígios coletivos – especialmente por meio de Ações Civis Públicas (ACP) e outras demandas coletivas – busca-se a tutela de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos. Esses três tipos de interesses (como o meio ambiente, os direitos de um grupo específico ou uma série de direitos individuais com origem comum, respectivamente) costumam envolver questões fáticas de grande alcance e complexidade. Nesse contexto, as provas técnicas (perícias e pareceres especializados) ganham relevância crucial. Elas fornecem embasamento científico e objetivo para as alegações das partes, ajudando o Judiciário a compreender matéria altamente especializada.
Em ações coletivas de alto impacto, a qualidade e robustez da prova técnica podem ser decisivas para o desfecho. Grandes desastres ambientais, problemas de saúde pública ou demandas consumeristas abrangendo milhares de pessoas exigem fundamentação técnica sólida para convencer o julgador a conceder as medidas amplas requeridas. A justificativa deste artigo, portanto, é evidenciar como a condução estratégica de perícias complexas pode determinar o sucesso ou fracasso dessas ações coletivas. O objetivo central é analisar conceitos, técnicas e desafios ligados à prova técnica nos litígios coletivos, oferecendo uma visão prática de estratégias de produção e impugnação, bem como discutir tendências e boas práticas para advogados e magistrados.
1. Conceito e Natureza das Provas Técnicas Complexas
A prova técnica consiste na produção de evidências por meio de conhecimento científico ou especializado, geralmente realizada por um perito nomeado pelo juiz (especialista na matéria em discussão). No processo civil brasileiro, a prova pericial é regulamentada pelos arts. 464 a 480 do Código de Processo Civil (CPC/2015). De acordo com o art. 464 do CPC, a perícia pode envolver exame, vistoria ou avaliação, e será indeferida caso o fato não exija conhecimento especializado, já esteja provado por outros meios, ou se a verificação for impraticável.
O CPC distingue a prova técnica simples daquela mais complexa: quando a questão controvertida for de menor complexidade, admite-se a chamada prova técnica simplificada (art. 464, §2º), na qual o juiz pode ouvir um especialista em audiência, em vez de instaurar uma perícia formal extensa. Já a prova técnica complexa ocorre nas situações em que o ponto controvertido demanda análise aprofundada, multidisciplinar ou de grande volume de dados, tornando necessária uma perícia judicial estruturada.
Nas situações de maior envergadura, a própria lei prevê mecanismos adequados. Por exemplo, o CPC permite que mais de um perito seja nomeado quando a perícia abranger mais de uma área de conhecimento especializado (art. 475). Isso é comum em casos que envolvem, simultaneamente, questões de engenharia, meio ambiente e medicina, por exemplo.
Assim, prova técnica complexa pode ser conceituada como aquela que envolve investigação científica elaborada, eventualmente multidisciplinar, para esclarecer fatos essenciais ao processo. Outras normas correlatas reforçam a importância dessa prova: na legislação consumerista (Código de Defesa do Consumidor), por exemplo, prevê-se a facilitação da prova em favor da vítima e até a inversão do ônus da prova (art. 6º, VIII, do CDC) quando apropriado – o que muitas vezes implica que fornecedores tenham de apresentar dados técnicos para comprovar a segurança ou qualidade de seus produtos.
Em suma, sempre que a controvérsia jurídica envolver conhecimento técnico especializado – como em questões ambientais, saúde pública, obras de engenharia complexas ou casos de tecnologia de ponta – a prova pericial se torna o eixo central para a descoberta da verdade dos fatos.
2. Papel das Provas Técnicas em Ações Civis Públicas
Nas Ações Civis Públicas e demais processos coletivos, a robustez da prova é fundamental para sustentar os pedidos amplos formulados. Diferentemente de um litígio individual, em que às vezes testemunhos ou documentos simples podem bastar, a ação coletiva frequentemente exige demonstrar um fato lesivo que atinge toda uma coletividade ou causa impacto difuso. Por exemplo, provar a contaminação de um rio que abastece milhares de pessoas, ou o defeito de segurança presente em um lote de veículos, requer evidências técnicas contundentes.
Os juízes tendem a ser mais cautelosos antes de impor obrigações de grande repercussão (como suspender as atividades de uma fábrica poluente ou condenar uma empresa a indenizar centenas de consumidores); por isso, a apresentação de provas técnico-científicas imparciais e bem fundamentadas confere credibilidade ao pleito coletivo e pode ser o diferencial para a concessão da tutela jurisdicional.
A imparcialidade e credibilidade do perito encarregado da perícia são pontos-chave nesse contexto. Em ações coletivas, muitas vezes há altos interesses econômicos e sociais em jogo, de modo que a escolha de um perito verdadeiramente independente e competente confere maior legitimidade ao laudo. As partes e o juiz devem zelar para que não pairem dúvidas sobre a idoneidade técnica e ética do expert. O CPC garante mecanismos para isso: as partes podem arguir impedimento ou suspeição do perito nomeado, caso exista vínculo ou falta de especialização, assegurando que somente peritos confiáveis conduzam a prova técnica.
Além disso, há uma relação estreita entre a prova técnica e a concessão de tutelas de urgência (liminares) em ações coletivas. Muitas vezes, busca-se uma tutela antecipada para estancar um dano coletivo iminente. por exemplo, interromper um ato poluidor, retirar um produto perigoso do mercado ou garantir atendimento médico emergencial a uma população.
Para convencer o magistrado a conceder essa medida urgente, é necessário demonstrar, já no início do processo, fortes indícios técnicos do perigo e da plausibilidade do direito invocado (fumus boni iuris e periculum in mora). Assim, estudos preliminares, relatórios de órgãos técnicos ou pareceres anexados com a petição inicial podem servir como prova técnica inicial, ainda que simplificada, viabilizando a liminar. Por outro lado, durante o andamento da ação, a produção de uma perícia completa poderá consolidar (ou não) aquelas impressões iniciais, influenciando a manutenção ou revogação da tutela antecipada.
Em suma, na ACP a prova técnica bem feita não apenas fundamenta a sentença final, mas também orienta as decisões provisórias, garantindo efetividade e segurança às determinações judiciais em defesa do interesse coletivo.
3. Estratégias de Produção e Impugnação de Prova Técnica
Diante da importância da perícia, advogados envolvidos em litígios coletivos devem adotar estratégias cuidadosas tanto na produção quanto na impugnação da prova técnica.
Formulação de quesitos estratégicos: Uma vez deferida a perícia, as partes têm o direito de apresentar quesitos, isto é, perguntas formais ao perito, sobre os pontos controvertidos. É crucial elaborar quesitos de forma estratégica, buscando extrair informações relevantes para a tese de cada lado. Os quesitos devem ser objetivos e claros, evitando tanto generalidades inúteis quanto direcionamentos tendenciosos.
Na prática forense, bons quesitos ajudam a “guiar” o trabalho pericial para aspectos que interessam ao caso: por exemplo, em uma ação ambiental, formular questões sobre a extensão geográfica da contaminação, os níveis de toxina encontrados e os possíveis riscos à saúde humana. Questões bem formuladas garantem que o laudo aborde todos os pontos essenciais sob a ótica técnica. Além disso, é possível ao advogado, ao elaborar quesitos, já pensar adiante em possíveis lacunas ou contradições – de modo que as perguntas induzam o perito a esclarecê-las, evitando dúvidas futuras.
Ressalte-se que o juiz também pode formular quesitos e deve indeferir aqueles das partes que sejam impertinentes ou meramente protelatórios. Portanto, a arte está em elaborar perguntas pertinentes que sirvam à estratégia probatória sem fugir do escopo técnico.
Outra estratégia valiosa é o requerimento de assistentes técnicos. Cada parte, em uma perícia judicial, pode nomear seu próprio especialista de confiança para acompanhar o trabalho do perito do juízo. O assistente técnico atua como um consultor: ele pode sugerir quesitos ao advogado, participar das diligências periciais e, ao final, elaborar um parecer técnico independente sobre o objeto da perícia.
Esse parecer do assistente não tem o mesmo peso oficial do laudo do perito judicial, mas pode influenciar o convencimento do juiz, especialmente se apontar aspectos não considerados ou conclusões divergentes embasadas em metodologia sólida.
A presença de assistentes técnicos é uma garantia importante de contraditório na prova pericial, permitindo que cada lado tenha acesso a conhecimento especializado para analisar criticamente o laudo. Na prática, em litígios coletivos complexos, é altamente recomendável que os autores (por exemplo, o Ministério Público ou associações) e os réus contratem consultores técnicos desde o início. Esses profissionais auxiliam na preparação do caso e na compreensão de dados técnicos volumosos, além de conferirem mais legitimidade científica aos argumentos da parte.
Depois que o perito oficial apresenta o laudo pericial, pode ocorrer de suas conclusões desfavorecerem uma das partes. Nessa situação, a parte prejudicada não está de mãos atadas, ao contrário, existem diversas estratégias para impugnar ou questionar a prova técnica. Inicialmente, a parte pode se manifestar apontando inconsistências fáticas ou lógicas no laudo: por exemplo, dados contraditórios, resultados que não correspondem às evidências coletadas, ou conclusões que extrapolam o que foi examinado.
Outra linha de ataque é questionar a metodologia empregada: o CPC exige que o perito indique no laudo o método utilizado e comprove que este é aceito pelos especialistas da área. Se o método for inadequado, não reconhecido cientificamente, ou se o perito não seguiu protocolos técnicos convencionados, a parte poderá alegar a fragilidade científica do laudo.
Do mesmo modo, pode-se alegar que o perito não respondeu a todos os quesitos formulados, o que, se comprovado, pode levar o juiz a determinar esclarecimentos ou complementação da perícia. O art. 477, §2º do CPC prevê que, havendo divergência ou dúvida apresentada por qualquer parte (ou um parecer divergente do assistente técnico), o perito deve prestar esclarecimentos adicionais em prazo determinado. Assim, a impugnação muitas vezes começa com um pedido formal de esclarecimentos ao perito, para que ele detalhe pontos obscuros ou retifique eventuais erros.
Em casos graves, a parte poderá até pedir uma nova perícia (segunda perícia), com outro perito, alegando que a primeira é insuficiente ou viciada – possibilidade prevista no art. 480 do CPC quando a matéria não estiver suficientemente esclarecida. Contudo, vale notar que uma segunda perícia não anula a primeira automaticamente; ambas serão consideradas pelo juiz, cabendo a este avaliar o peso de cada uma. Por isso, antes de buscar uma nova perícia, a parte deve construir argumentos sólidos de que o laudo inicial é falho.
Se durante o procedimento pericial surgirem elementos que coloquem em dúvida a imparcialidade do perito (por exemplo, descoberta de vínculo com uma das partes, ou parcialidade manifesta nas respostas), a parte pode arguir a suspeição do perito e requerer sua substituição.
Essa é uma medida drástica e raramente deferida sem evidências concretas, mas em litígios de grande monta não é incomum surgir questionamentos sobre o perito – sobretudo se o laudo for altamente desfavorável a uma parte, esta naturalmente tentará escrutiná-lo em busca de falhas ou viés. A credibilidade do laudo pode ser minada se ficar demonstrado algum viés, o que reforça a importância de nomear peritos isentos desde o início.
Por fim, a prova técnica complexa pode ter um papel estratégico também fora do âmbito estritamente probatório, influenciando as negociações e acordos no processo. Em muitas ações coletivas, após a elaboração do laudo pericial, sobretudo se ele aponta claramente a responsabilidade de um réu e dimensiona o dano, as partes podem se ver estimuladas a buscar um acordo.
O laudo técnico, ao esclarecer os fatos controvertidos, reduz as incertezas sobre o desfecho provável do caso. Por exemplo, se uma perícia ambiental conclui que uma indústria poluiu gravemente determinada área, o réu pode preferir negociar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) ou um acordo judicial para reparação dos danos, em vez de prolongar a disputa até sentença, sob o risco de uma condenação possivelmente mais onerosa.
Em resumo, uma prova técnica bem encaminhada não só esclarece o juiz, mas também baliza o diálogo entre as partes, podendo acelerar a resolução do conflito de forma eficiente.
4. Aspectos Específicos das Provas Técnicas Complexas em Litígios Coletivos
As ações coletivas apresentam características que tornam a produção de provas técnicas especialmente desafiadora.
Demandas coletivas frequentemente envolvem grande número de pessoas ou áreas extensas, exigindo a coleta e análise de dados volumosos, como amostras ambientais, estatísticas de consumo ou registros internos de empresas. Essa logística é complexa, podendo demandar cooperação de órgãos públicos e enfrentar resistência das partes na entrega de informações. Embora o CPC imponha dever de colaboração e permita sanções pela recusa, na prática há disputas incidentais e prolongamento da fase instrutória.
Além disso, muitos litígios coletivos exigem conhecimentos de diferentes áreas (engenharia, química, medicina, economia, entre outras). É comum a nomeação de mais de um perito e assistentes técnicos especializados, exigindo integração entre profissionais para evitar laudos fragmentados. Advogados e magistrados devem coordenar essa atuação multidisciplinar para que o resultado técnico seja completo e juridicamente coerente.
5. Conclusão
A prova técnica complexa é um dos pilares para a efetividade das ações coletivas, sobretudo nas Ações Civis Públicas de grande impacto. Sua correta condução garante não apenas a apuração precisa dos fatos, mas também confere legitimidade e robustez às decisões judiciais, impactando diretamente a proteção de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.
No contexto desses litígios, a preparação antecipada, a escolha criteriosa de peritos, a formulação estratégica de quesitos e o acompanhamento próximo da perícia são medidas que aumentam a qualidade do resultado e reduzem riscos de nulidades ou conclusões frágeis. Ao mesmo tempo, a abertura para soluções consensuais a partir de laudos consistentes pode encurtar o tempo de resposta às demandas sociais, entregando resultados mais rápidos à coletividade.
Assim, advogados que dominam as técnicas de produção, análise e impugnação da prova técnica fortalecem a função primordial do processo. O investimento em qualificação, coordenação interdisciplinar e uso ético de recursos tecnológicos tende a elevar o padrão de decisões, tornando a tutela coletiva mais eficiente, justa e alinhada aos desafios envolvidos nesses litígios.
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Autor: Carlos Eduardo Melo Bonilha. Advogado (OAB/PR nº. 115.107). Bacharel em direito pela Universidade Federal do Paraná. Pós-graduando em Direito e Processual Civil Contemporâneo (ESA/OAB SP). Pós-graduando em Gestão e Business Law (Fundação Getúlio Vargas). Membro da Comissão de Direito Processual Civil da Ordem dos Advogados do Brasil subseção Paraná.
Referencias:
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