Com as alterações trazidas pela Lei nº. 14.112/2020 à Lei nº. 11.101/2005, que trata acerca da Recuperação Judicial de empresas, houve algumas transformações acerca do entendimento do papel do produtor rural nesse âmbito, conforme explicado a seguir.
O que é Recuperação Judicial?
Conforme já disposto em artigo anterior, quando uma empresa encontra dificuldade de cumprir com suas obrigações financeiras em relação aos seus credores de maneira geral.
Assim sendo, a empresa, se encontrando em tal situação, entra com o pedido judicial de Recuperação Judicial.
Uma vez aprovado o pedido, é criado um plano de Recuperação Judicial para a empresa, estabelecendo-se metas, prazos para pagamento aos credores e previsões de gastos, para oportunizar que a empresa, de fato, se recupere financeiramente e não precise decretar falência.
Qual a diferença entre pessoa física e pessoa jurídica?
Pessoa física é a pessoa natural, sendo tal termo jurídico referente a todo indivíduo em vida, mesmo que não possua CPF. A pessoa física, como cidadã, possui algumas obrigações e um conjunto de ordens, como dispõe o próprio art. 1º do Código Civil:
Art. 1º. Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil.
A pessoa jurídica, por sua vez, é formada por um conjunto de pessoas e/ou outras pessoas jurídicas, criada de acordo com a lei e com uma finalidade específica. Assim, podendo ser administração, prestação de serviços, produção ou comercialização de produtos. Pode ser empresas, ONGs, partidos políticos, sociedades, fundações ou igrejas.
A pessoa jurídica na forma de empresa está prevista na legislação, especialmente no art. 966 e ss. do Código Civil, se referindo à organização de fatores produção e abrangendo capital e trabalho, in verbis:
Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.
Nesse sentido, pessoa jurídica é definida como “a unidade de pessoas naturais ou de patrimônios, que visa à consecução de certos fins, reconhecida pela ordem jurídica como sujeito de direitos e obrigações”[1].
Enquanto, quanto à pessoa física, podemos dizer de maneira simplificada, que a impossibilidade de pagar seus credores é chamada de insolvência; para a pessoa jurídica, tal realidade é chamada falência.
Tal distinção é importante de ser destacada porque a legislação de Recuperação Judicial prevê, em suma, o termo falência para caracterizar a impossibilidade de pagamento por parte da pessoa jurídica, sendo a Recuperação Judicial uma tentativa para que a empresa se albergue e consiga, mediante planejamento, reerguer-se e adimplir suas dívidas com os credores.
Dessa maneira, pessoas físicas não poderiam solicitar a Recuperação Judicial, dentre elas, o produtor rural. Todavia, com a Lei nº. 14.112/2020, foram estabelecidas algumas regras que permitem que o produtor rural seja inscrito como pessoa jurídica para, em seguida, solicitar a Recuperação Judicial, sem que seja necessário ter, antes disso, 02 (dois) anos como empresa propriamente dita (registrada).
Quem é o produtor rural?
A legislação brasileira considera a agricultura, a pecuária, o extrativismo, a piscicultura, a extração e exploração vegetal e animal, como atividade rural.
Nesse âmbito, existem as pessoas jurídicas que se dedicam à atividade rural, constituídas como empresas; mas também a figura jurídica do produtor rural, que por muito tempo foi negligenciada, tratada no ordenamento como apenas pessoa física; sendo ignorados, nesse sentido, os produtores rurais empresários, cuja atividade rural existe com o fim de gerar a comercialização dos próprios produtos rurais.
Ou seja, apenas empresas de produção rural eram reconhecidas pelo ordenamento jurídica como detentoras de certos direitos destinados aos agentes comercializadores de produtos rurais e, portanto, somente as empresas legalmente constituídas podiam utilizar-se de institutos como, por exemplo, da Recuperação Judicial.
Com relação ao produtor rural, à luz do artigo 971 do Código Civil, pode-se vislumbrar que a inscrição em Junta Comercial não é obrigatória, sendo apenas uma faculdade:
Art. 971. O empresário, cuja atividade rural constitua sua principal profissão, pode, observadas as formalidades de que tratam o art. 968 e seus parágrafos, requerer inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede, caso em que, depois de inscrito, ficará equiparado, para todos os efeitos, ao empresário sujeito a registro.
Dessa forma, nada impede o produtor rural pessoa física de fazer tal registro, desde que ele se atenha aos direitos e deveres, bem como obrigações perante o Código Civil, se equiparando assim, para todos os efeitos, ao empresário individual sujeito à registro.
Ou seja, o produtor rural no país, antes, sob o ponto de vista legislativo, não era considerado como comerciante ou empresário, mesmo que atendesse os requisitos dos arts. 966 e 967 do Código Civil, ou seja, mesmo que exercesse profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.
Trata-se, dessa forma, de um tema com enorme importância para ramo empresarial, principalmente porque o tratamento do produtor rural se difere dos demais empresários, tendo em vista que, dentre demais legislações, os arts. 971 e 984 trata o empresário rural de uma forma privilegiada.
Todavia, com o advento da Lei nº. 14.112/2020, foi flexibilizada, de certa forma, a questão de enquadramento do produtor rural como empresário, conforme se verificará a seguir.
Quais modificações a Lei nº. 14.112/2020 trouxe para o produtor rural?
A referida lei acrescentou alguns itens à Lei nº. 11.101/2005, relativos à realidade do produtor rural.
No art. 48, §§ 2º a 5º do referido códex, por exemplo, relacionou os documentos que o produtor rural pode apresentar para comprovar a atividade empresarial. Veja-se:
Art. 48. Poderá requerer recuperação judicial o devedor que, no momento do pedido, exerça regularmente suas atividades há mais de 2 (dois) anos e que atenda aos seguintes requisitos, cumulativamente:(…)
§ 2º No caso de exercício de atividade rural por pessoa jurídica, admite-se a comprovação do prazo estabelecido no caput deste artigo por meio da Escrituração Contábil Fiscal (ECF), ou por meio de obrigação legal de registros contábeis que venha a substituir a ECF, entregue tempestivamente.
§ 3º Para a comprovação do prazo estabelecido no caput deste artigo, o cálculo do período de exercício de atividade rural por pessoa física é feito com base no Livro Caixa Digital do Produtor Rural (LCDPR), ou por meio de obrigação legal de registros contábeis que venha a substituir o LCDPR, e pela Declaração do Imposto sobre a Renda da Pessoa Física (DIRPF) e balanço patrimonial, todos entregues tempestivamente.
§ 4º Para efeito do disposto no § 3º deste artigo, no que diz respeito ao período em que não for exigível a entrega do LCDPR, admitir-se-á a entrega do livro-caixa utilizado para a elaboração da DIRPF.
§ 5º Para os fins de atendimento ao disposto nos §§ 2º e 3º deste artigo, as informações contábeis relativas a receitas, a bens, a despesas, a custos e a dívidas deverão estar organizadas de acordo com a legislação e com o padrão contábil da legislação correlata vigente, bem como guardar obediência ao regime de competência e de elaboração de balanço patrimonial por contador habilitado.
Já o art. 49, §§ 6º a 9º da referida lei, por sua vez, relaciona mais regramentos acerca da documentação que pode ser apresentada pelo produtor rural, que não tenha como comprovar o exercício da atividade empresarial por meio da documentação de praxe utilizada nesse âmbito.
Art. 49. (…)
§ 6º Nas hipóteses de que tratam os §§ 2º e 3º do art. 48 desta Lei, somente estarão sujeitos à recuperação judicial os créditos que decorram exclusivamente da atividade rural e estejam discriminados nos documentos a que se referem os citados parágrafos, ainda que não vencidos.
§ 7º Não se sujeitarão aos efeitos da recuperação judicial os recursos controlados e abrangidos nos termos dos arts. 14 e 21 da Lei nº 4.829, de 5 de novembro de 1965 .
§ 8º Estarão sujeitos à recuperação judicial os recursos de que trata o § 7º deste artigo que não tenham sido objeto de renegociação entre o devedor e a instituição financeira antes do pedido de recuperação judicial, na forma de ato do Poder Executivo.
§ 9º Não se enquadrará nos créditos referidos no caput deste artigo aquele relativo à dívida constituída nos 3 (três) últimos anos anteriores ao pedido de recuperação judicial, que tenha sido contraída com a finalidade de aquisição de propriedades rurais, bem como as respectivas garantias.
Por fim, o art. 70-A da lei supramencionada também previu que os produtores rurais poderiam também apresentar plano especial de recuperação judicial, quando tiverem valor da causa inferior a 4,8 milhões:
Art. 70-A. O produtor rural de que trata o § 3º do art. 48 desta Lei poderá apresentar plano especial de recuperação judicial, nos termos desta Seção, desde que o valor da causa não exceda a R$ 4.800.000,00 (quatro milhões e oitocentos mil reais).
Cumpre destacar, nessa toada, que o art. 51, inciso XI, § 5º da Lei nº. 14.112/2020 define que o valor da causa da Recuperação Judicial corresponderá ao montante total dos créditos sujeitos à recuperação judicial.
Possíveis problemáticas
A questão da aceitação do produtor rural como empresário para que possa realizar o pedido de Recuperação Judicial pode causar algumas problemáticas em relação aos credores.
Isso porque, seja empresas que fornecem os insumos ou as próprias instituições financeiras, como cooperativas de crédito, por exemplo, quando se concede crédito ao produtor rural pessoa física, a análise que se faz é do histórico do produtor rural, avaliando-se seu imposto de renda, o histórico de produtividade da região e área onde se encontra.
Já a análise realizada para concessão de crédito à empresas é muito mais criteriosa, porque analisa balanços e registros contábeis da pessoa jurídica.
Nesse sentido, o produtor rural, obtendo a concessão de crédito após a análise da pessoa física, – seja recebido em forma de faturamento dos insumos, fertilizantes, sementes, etc; ou até mesmo em forma de pecúnia -, deve garantir o pagamento do crédito por meio de, por exemplo, penhor de safra, hipoteca ou alienação fiduciária.
O título de crédito da CPR também é muito utilizada como garantia para este crédito dado geralmente no período safra (1 ano), suficiente para que o produtor rural possa plantar, colher, obter lucro e pagar o crédito contratado.
Ocorre que, com o advento da referida legislação e consequente entendimento dos Tribunais Superiores, que afrouxou os requisitos para os produtores rurais se tornarem pessoas jurídicas, alguns deles têm repentinamente se inscrito numa Junta Comercial, para passar a serem empresários individuais (empresário rural) e poderem pedir Recuperação Judicial, instituto previsto pela Lei nº. 11.101/2005.
Todavia, as cooperativas de crédito e instituições financeiras (credores) que teriam analisado, na época, a concessão do crédito sob o âmbito de pessoa física, se deparam, na fase de recuperação judicial, com uma pessoa jurídica, inserida em um tipo de regramento distinto.
Essa realidade, por exemplo, pode gerar problemas quanto às garantias dadas aos credores, posto que o CPR pode ser considerado como um bem essencial, o que forja cerca insegurança para o mercado, porque os credores não possuiriam mais acesso à garantia, esta amparada pelas regras e arcabouço jurídico que a Recuperação Judicial promete para as pessoas jurídicas.
Isso preocupa, especialmente, os agentes que fornecem crédito (tradings, multinacionais, distribuidoras, bancos privados, mercados de capitais).
De outro lado, a transformação do produtor rural de pessoa física para pessoa jurídica seria na modalidade de empresário individual, de modo que questiona-se se o planejamento da Recuperação Judicial teria de abarcar também os bens pessoais do mesmo, tendo em vista que há comunicabilidade de bens na referida natureza jurídica de empresa.
Qual entendimento do STJ?
Ao final de 2020 houve uma certa consolidação do entendimento do Superior Tribunal de Justiça acerca do tema, no julgamento do REsp nº 1811953/MT, que reiterou o entendimento do REsp 1.800.032, no qual a Quarta Turma também havia concluído que o requisito de dois anos de atividade, exigido em qualquer pedido de recuperação, pode ser atendido pelo empresário rural com a inclusão do período em que ele não tinha registro na Junta Comercial.
?A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) firmou o entendimento[2], portanto, de que o empresário rural, embora precise estar registrado na Junta Comercial para requerer a recuperação judicial, pode computar o período anterior à formalização do registro para cumprir o prazo mínimo de dois anos exigido pelo artigo 48 da Lei 11.101/2005.
Com a decisão, as duas turmas de direito privado do STJ passaram a ter uma posição unificada sobre o tema.
Cooperativas de crédito rural podem pedir Recuperação Judicial?
Ainda que evidenciada quanto à sua atividade econômica no âmbito rural, o entendimento majoritário afirma que cooperativas agrícolas não podem pedir recuperação judicial.
Isto de acordo com três argumentos principais, quais sejam: vedação expressa no inciso II do art. 2º da Lei 11.101/2005; não sujeição à falência, conforme caput do art. 4º da Lei 5.764/1971; a natureza não empresária da sociedade cooperativa, conforme § único do art. 982 do Código Civil [3].
Destaca-se que as cooperativas são sui generis, constituindo um tipo societário próprio regido supletivamente pela lei da sociedade simples. Mais ainda, possuem nome empresarial acompanhado do vocábulo “cooperativa”, conforme art. 1.159 do Código Civil, reforçando sua natureza econômica.
Todavia, de acordo com as justificativas supramencionadas, em suma, tem-se que a cooperativa de crédito não pode fazer uso da recuperação judicial, de forma que o crédito de cooperativa está excluído dos efeitos do processo de recuperação judicial do produtor rural, desde que se refira a ato cooperativo. Ainda, destaca-se que as cooperativas, de modo geral, não têm legitimidade ativa para o ajuizamento da recuperação judicial e, ainda que sejam agentes econômicos, a lei, ao caracterizá-la como sociedade simples, afastou-a do regime da insolvência da sociedade empresária.
De todo modo, a situação deve ser analisada caso a caso e nada impede que hajam alterações legislativas futuras sobre o tema, ou que a própria jurisprudência dos Tribunais Superiores entendam de forma diversa.
Conclusão
Tradicionalmente a Lei de Recuperação de Empresa e Falência é aplicável apenas aos empresários individuais e sociedades empresárias.
Isso ocorre no sistema brasileiro, pois adotamos duas espécies de tratamento da insolvência: um para os empresários (recuperação de empresas e falências); e outro destinado aos não empresários (insolvência civil, que não prevê a possibilidade de recuperação).
Todavia, alguns produtores rurais e cooperativas começaram a pleitear recuperação judicial recentemente, algumas delas, especialmente em relação aos produtores rurais, que acabaram sendo deferidas pelos tribunais. A jurisprudência do STJ firmou o entendimento, nesse sentido de que é possível o deferimento da recuperação judicial para produtores rurais, desde que haja registro na junta comercial e tenha atividade regular há mais de 2 anos (art. 48, Lei nº 11.101/2005), mesmo que esta não tenha sido registrada formalmente como empresária[4].
Assim sendo, ampliou-se a Recuperação Judicial para produtores rurais (pessoas físicas), gerando diversas possibilidades e possíveis entraves quanto ao assunto.
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AUTORES
Antonio Neiva de Macedo Neto. Advogado (OAB/PR sob nº. 55.082) e sócio do Barioni & Macedo Sociedade de Advogados. Pós-graduado em Direito Processual Civil Contemporâneo pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR).
Clarice de Camargo Ibañez. Advogada (OAB/PR sob o nº. 110.008). Mestra em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Gisele Barioni de Macedo. Advogada (OAB/PR nº. 57.136) e sócia do Barioni & Macedo Sociedade de Advogados. Pós-graduada em Direito e Processo Tributário pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst). Pós-graduada em Direito Processual Civil Contemporâneo pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR).
REFERÊNCIAS
[1] DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. São Paulo: Editora Saraiva. 2002. Vol. 1, 18ª Ed. P. 206.
[2] Decisão da Terceira Turma consolida jurisprudência do STJ sobre recuperação do empresário rural. 2020. Disponível em: <https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/17112020-Decisao-da-Terceira-Turma-consolida-jurisprudencia-do-STJ-sobre-recuperacao-do-empresario-rural.aspx> Acesso em 26 mai 2022.
[3] MOREIRA, Alberto Camiña. A cooperativa na reforma da lei 11.101/05. 2021. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/coluna/insolvencia-em-foco/344906/a-cooperativa-na-reforma-da-lei-11-101-05>. Acesso em 26 mai 2022.
[4] “Não é necessária a migração do regime há mais de 2 anos, se o ruralista desempenhar sua atividade regularmente por este período”. (STJ – Resp: 1800032 MT 2019/0050498-5, Relator: Ministro Marco Buzzi, Data de Publicação: DJe 10/02/2020)