A entrega das chaves não encerra o risco jurídico; inaugura uma nova etapa. Sem governança, comunicação clara e registros consistentes, o atendimento pós-obra tende a se fragmentar, abrindo espaço para alegações de inércia, dano moral e descumprimento de desempenho. Este artigo apresenta orientações gerais para estruturar o programa de pós-obra com base em boas práticas jurídicas e técnicas: definição de papéis, canal único de contato, critérios objetivos de criticidade, roteiro de visita técnica e documentação completa de cada ocorrência.
Ao integrar esses elementos com contratos e manuais do proprietário/síndico, a construtora ganha previsibilidade, reduz passivos e fortalece sua reputação. Mais do que responder a chamados, trata-se de demonstrar diligência — a linguagem que convence o consumidor, o condomínio e, quando necessário, o Judiciário.
Fundamentos legais e técnicos, sem juridiquês
O ponto de partida jurídico é direto: o consumidor tem direito a um produto que funcione como prometido e, diante de problema, a uma resposta diligente. O Código de Defesa do Consumidor estabelece o dever de reparar vícios e de tratar o cliente com transparência e boa-fé; o Código Civil reforça que itens de solidez e segurança exigem atenção redobrada; e as normas técnicas — em especial a NBR 15575 (desempenho), a NBR 14037 (manual do proprietário) e a NBR 5674 (manutenção predial) — definem o patamar mínimo de desempenho e a rotina de conservação esperada.
Na prática, tudo isso se traduz em três obrigações muito concretas: oferecer um canal claro para o cliente falar, investigar tecnicamente o que foi relatado e deixar prova de que a construtora atendeu com método.
É aqui que entram as escolhas de desenho do seu programa.
Como estruturar o programa: Governança, canal e triagem
A primeira é de governança: alguém precisa ser responsável por decidir o que é prioridade, por autorizar intervenções e por encerrar atendimentos. Sem um responsável claro, a reclamação circula, a resposta atrasa e o risco jurídico cresce.
A segunda escolha é de comunicação: um canal único — formulário, e-mail ou aplicativo — organiza o fluxo, evita pedidos perdidos em múltiplos contatos e gera automaticamente um protocolo com data e hora.
A terceira é de triagem: nem todo problema tem a mesma gravidade. É preciso classificar por criticidade com base em critérios simples (risco à segurança, comprometimento do uso, dano progressivo) e deixar isso claro para o cliente. Ao comunicar desde o início “o que vem primeiro e por quê”, a construtora demonstra seriedade e reduz a sensação de abandono que alimenta ações por dano moral.
Atendimento técnico que convence: vistoria e trilha de evidências
A vistoria técnica é o coração do pós-obra. Ela não é um “olhar rápido”; é um pequeno relatório que responde a três perguntas: qual é o sintoma, qual é a hipótese provável de causa (projeto, execução, material ou uso/manutenção) e qual é o plano de tratamento. Fotografia antes e depois, identificação do local e breve descrição do que foi feito bastam para construir uma trilha de evidências íntegra. Essa trilha é decisiva por dois motivos: orienta a equipe na solução — evitando “remendos” que voltam — e, se necessário, convence o juiz de que houve diligência real, não apenas promessas de retorno.
No registro documental, menos é mais — e precisa ser contínuo. Começa com o relato original do consumidor (sem reescrever as palavras dele), segue com o protocolo e as mensagens de agendamento, inclui o laudo da visita e finaliza com a ciência do cliente sobre a solução adotada, além de um breve acompanhamento alguns dias depois (“permanece resolvido?”). Essa sequência simples organiza a memória do caso e reduz a “palavra contra palavra”.
Em áreas comuns, substitui-se a ciência individual pela assinatura do síndico e pelas deliberações em assembleia, sempre anexando os documentos de recebimento por etapas.
Onde estoura e como aplicar na prática
Infiltrações são o conflito número um porque afetam saúde, bens e a percepção de qualidade. O antídoto começa antes da entrega, com testes de estanqueidade e registro de impermeabilizações, e continua no atendimento com triagem de alta prioridade, vistoria dirigida (shafts, ralos, juntas, esquadrias) e solução completa — não paliativa — seguida de relatório simples ao cliente. Em elétrica, quando há risco, a resposta é imediata; o técnico checa dispositivos de proteção e aterramento, registra a correção e entrega orientações de segurança por escrito.
Em acústica e conforto térmico, muitas queixas nascem do desencontro entre expectativa e desempenho mínimo normativo; por isso, ensaios de campo e laudos objetivos são o idioma que encerra a discussão, seguidos, quando necessário, de ajustes de vedação e selagens. Revestimentos e fachadas pedem visão de “gestão de padrão”: se uma patologia se repete, a resposta madura envolve inspeção por amostragem ampliada, perícia independente para delimitar causas e um plano público de tratamento por etapas, com cronograma e comunicação periódica ao condomínio.
Esquadrias e vidros exigem atenção constante: muita infiltração e ruído têm origem em regulagens finas, vedação inadequada ou manutenção incorreta; entregar a regulagem inicial documentada e orientar o usuário sobre uso e limpeza evita que pequenos desvios virem litígios.
Por fim, é crucial separar vício e manutenção. Sem um Manual do Proprietário que fale a língua do morador, intervenções corriqueiras — furos em áreas molhadas, remoção de juntas, sobrecarga — acabam imputadas à construtora. Já nas áreas comuns, Manual do Síndico e Plano de Manutenção (NBR 5674) precisam existir e ser cumpridos; do contrário, a garantia se contamina por falta de conservação.
Manuais, publicidade alinhada e cadeia de fornecedores
Manuais claros não “transferem culpa”: educam e preservam a performance do sistema. Eles explicam o que é responsabilidade do morador, como abrir chamados, quais cuidados adotar e quais documentos guardar. No mesmo sentido, campanhas de venda, memorial descritivo e contrato precisam “falar a mesma língua”. Expressões absolutas (“100% sustentável”, “acústica total”) são convite à frustração; melhor usar afirmações verificáveis e específicas, amparadas por laudos ou certificações quando couber, com escopo explícito (áreas comuns x unidades, condições para economias).
Isso derruba o risco de propaganda enganosa e evita que o jurídico apague incêndios de marketing. Por fim, a cadeia de fornecedores deve operar no mesmo padrão: empreiteiros, instaladores e fabricantes que participam do atendimento precisam estar contratualmente obrigados a seguir o fluxo de registros e responder dentro das diretrizes definidas. ART/RRT, garantias, seguros e responsabilidades de pós-obra não são detalhes; são o caminho para atender bem o consumidor e, depois, alocar corretamente a responsabilidade entre quem projetou, executou e forneceu.
Conclusão
Nada disso exige fórmulas secretas, e sim constância: governança com nome e sobrenome; canal único que gere protocolo; triagem por criticidade explicada ao cliente; vistoria que descreve sintomas, causas prováveis e tratamento; documentação fotográfica antes e depois; ciência do consumidor ou do síndico; e uma comunicação que informe o que foi feito e como proceder se o problema voltar.
Com esse encadeamento, o pós-obra deixa de ser um “buraco negro” e vira rotina auditável. O efeito é cumulativo: menos reclamações avançam a órgãos de defesa, menos conflitos chegam ao Judiciário e o tempo da equipe passa a ser gasto em solução — não em justificativa.
Em síntese, um pós-obra inteligente não se mede por promessas, e sim por processo e prova. Ao ancorar o atendimento nos fundamentos legais e nas normas técnicas e aplicá-los com método aos focos clássicos de risco, construtoras e incorporadoras reduzem passivos, constroem confiança e transformam a etapa mais desafiadora do ciclo de obra em seu melhor argumento de qualidade.
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Autor
Carlos Eduardo Melo Bonilha. Advogado (OAB/PR nº. 115.107). Bacharel em direito pela Universidade Federal do Paraná. Pós-graduando em Direito e Processual Civil Contemporâneo (ESA/OAB SP). Pós-graduando em Gestão e Business Law (Fundação Getúlio Vargas). Membro da Comissão de Direito Processual Civil da Ordem dos Advogados do Brasil subseção Paraná.
Referências
BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências (Código de Defesa do Consumidor). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 12 set. 1990. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm. Acesso em: 3 set. 2025.
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 jan. 2002. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 3 set. 2025.
BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 15 ago. 2018. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709compilado.htm. Acesso em: 3 set. 2025.
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. ABNT NBR 15575 (Partes 1 a 6): Edificações habitacionais — Desempenho. Rio de Janeiro: ABNT, 2013 (e atualizações). Referência pública introdutória disponível em: https://360arquitetura.arq.br/wp-content/uploads/2016/01/NBR_15575-1_2013_Final-Requisitos-Gerais.pdf. Acesso em: 4 set. 2025.
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