Reforma Tributária do Consumo e Operações Imobiliárias: o Regime Específico de IBS e CBS à Luz da EC 132/2023 e da LC 214/2025

 

A Reforma Tributária do consumo, inaugurada pela Emenda Constitucional nº 132/2023 e regulamentada, em grande medida, pela Lei Complementar nº 214/2025, introduziu um modelo de IVA dual no Brasil, mediante a criação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), da Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS) e do Imposto Seletivo (IS).

Entre os diversos aspectos inovadores, destaca-se o regime específico aplicável às operações com bens imóveis, que abrange alienações, locações, cessões onerosas, arrendamentos, serviços de administração, intermediação e construção civil. A disciplina especial combina mecanismos de redução de alíquotas, deduções fixas de base de cálculo (redutor social) e um redutor de ajuste voltado a tributar prioritariamente a valorização imobiliária, mitigando efeitos de cumulatividade.

O objetivo deste artigo é analisar, em perspectiva sistemática, os principais contornos do regime específico de IBS/CBS nas operações imobiliárias, com foco em três eixos: (i) a inserção do setor no desenho global da Reforma; (ii) a técnica normativa adotada pela LC 214/2025 para alienações e locações; e (iii) os impactos práticos e controvérsias potenciais para incorporadoras, investidores, pessoas físicas e intermediários do mercado imobiliário.

 

 

1. Introdução

 

A promulgação da Emenda Constitucional nº 132, de 20 de dezembro de 2023, representou o ponto de inflexão de uma das mais amplas reformas tributárias realizadas sob a égide da Constituição de 1988, ao redesenhar a tributação sobre o consumo mediante a substituição de PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS por dois tributos não cumulativos – IBS e CBS – e por um Imposto Seletivo.

A Reforma foi concebida para ser implementada de forma gradual, ao longo de uma longa transição que se estende até 2033, durante a qual o sistema antigo e o novo convivem, com progressivo aumento da participação do IVA dual e redução dos tributos atuais.

Nesse contexto, a Lei Complementar nº 214, de 16 de janeiro de 2025, fruto da conversão do PLP 68/2024, inaugurou o primeiro bloco de legislação infraconstitucional da Reforma, estabelecendo normas gerais do IBS, da CBS e do Imposto Seletivo, bem como instituindo o Comitê Gestor do IBS.

Entre os diversos capítulos da LC 214/2025, ganha relevo o regime específico das operações com bens imóveis, que afasta a aplicação direta das regras gerais em favor de uma sistemática própria, voltada a conciliar: (i) a intenção de neutralidade e crédito amplo típicos do IVA; e (ii) a necessidade de evitar um choque excessivo de carga tributária sobre a moradia e a atividade imobiliária em geral.

 

2. A Reforma Tributária do Consumo: EC 132/2023 e LC 214/2025

 

A EC 132/2023 teve como eixos centrais: (a) simplificação do sistema; (b) redução de distorções alocativas; (c) tributação no destino; e (d) aumento de transparência para o contribuinte, com incidência “por fora” do preço.

Para tanto, instituiu o IVA dual, composto por:

 

  • IBS – de competência compartilhada entre estados, Distrito Federal e municípios;
  • CBS – de competência da União;
  • Imposto Seletivo (IS) – incidente sobre bens e serviços considerados prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente.

 

A LC 214/2025 concretiza esse desenho ao:

 

  1. Definir regras de incidência, base de cálculo, não cumulatividade e crédito financeiro amplo;
  2. Estabelecer a lógica de repartição de receitas e o papel do Comitê Gestor do IBS;
  3. Criar regimes específicos para determinados setores, entre os quais as operações com bens imóveis.

 

Uma das inovações centrais da LC 214/2025 é a consagração de um modelo de não cumulatividade financeira, pelo qual, em regra, todo gasto vinculado à atividade econômica – bens, serviços e direitos adquiridos com incidência de IBS/CBS – é potencial gerador de crédito, salvo hipóteses taxativas de vedação.

Essa abordagem se afasta da antiga discussão em torno do conceito de “insumo” para fins de PIS/Cofins, notoriamente litigiosa, aproximando o Brasil dos IVAs modernos que operam com crédito amplo e objetiva correlação com a atividade empresarial, e não com categorias restritivas casuísticas.

A implementação do novo sistema se estrutura em etapas, com previsão de: Introdução de alíquotas reduzidas de IBS e CBS em fase inicial (a partir de 2026), para teste de sistemas e calibragem (suspenso pela RFB em 02/12/2025); Redução gradual das alíquotas de ICMS e ISS e aumento progressivo de IBS/CBS entre 2029 e 2032; Extinção integral dos tributos anteriores sobre consumo e plena vigência do sistema dual a partir de 2033.

Essa transição é particularmente sensível para o mercado imobiliário, cujos contratos frequentemente se estendem por prazos longos, de modo que negócios firmados antes da reforma podem atravessar diferentes regimes tributários ao longo de sua execução.

 

3. O Regime Específico das Operações com Bens Imóveis

 

A LC 214/2025 prevê um Regime Específico das Operações com Bens Imóveis, aplicável a contribuintes submetidos ao regime regular de IBS/CBS que realizem, entre outras, as seguintes atividades:

  • Alienação de imóveis (inclusive incorporação imobiliária e parcelamento do solo);
  • Cessão e atos translativos ou constitutivos onerosos de direitos reais;
  • Locação, cessão onerosa e arrendamento de imóveis próprios;
  • Serviços de administração e intermediação imobiliária;
  • Serviços de construção civil relacionados a empreendimentos imobiliários.

Além disso, em determinadas condições, pessoas físicas que explorem locação, cessão ou arrendamento de imóveis próprios podem ser enquadradas como contribuintes de IBS/CBS, notadamente quando: (i) a receita anual superar R$ 240.000,00; e (ii) o contribuinte possuir mais de três imóveis destinados a essas atividades, conforme interpretação doutrinária e orientações de entidades de registro imobiliário.

 

 

4. Impactos Práticos e Controvérsias Potenciais

 

Embora o discurso oficial enfatize a neutralidade econômica do IVA dual e o esforço de preservação da moradia popular por meio de redutores e deduções, parte relevante da doutrina tem apontado uma tendência de aumento líquido de carga tributária sobre a renda de locação, sobretudo para grandes carteiras, holdings patrimoniais e fundos imobiliários de “tijolo”.

Em tais casos, o redutor de 70% da alíquota e o abatimento de R$ 600,00 por unidade residencial tendem a ser insuficientes para neutralizar a incidência de IBS/CBS, especialmente em imóveis de alto valor ou em portfólios com forte utilização de pessoa jurídica como veículo patrimonial.

Outro ponto sensível reside nos critérios de enquadramento de pessoas físicas como contribuintes de IBS/CBS nas locações de imóveis próprios, quando superados determinados limites de receita anual (R$ 240.000,00) e de quantidade de imóveis (mais de três unidades), o que leva à aproximação entre: o pequeno investidor que aluga um ou poucos imóveis (fora do regime regular); e o “quase empresário” imobiliário, que passa a ser tratado, na prática, como contribuinte típico do IVA dual.

Esse desenho abre espaço para discussões sobre requalificação de estruturas patrimoniais, especialmente no uso de pessoas físicas e holdings como mecanismos de planejamento tributário, impondo redobrada cautela na elaboração de contratos e na escolha do veículo jurídico mais adequado.

Embora a LC 214/2025 se concentre na tributação do consumo, a Reforma Tributária desencadeou movimentos de revisão de cadastros e valores referenciais que afetam diretamente tributos sobre patrimônio e transmissão, como IPTU, ITBI e ITCMD, além de repercutir sobre o planejamento do Imposto de Renda (ganho de capital e rendimentos de locação).

A adoção de conceitos como valor de referência para imóveis, já mencionado na sistemática do redutor de ajuste, sugere tendência de aproximação entre bases utilizadas para IBS/CBS e aquelas utilizadas para tributos patrimoniais, o que pode intensificar discussões sobre: capacidade contributiva e vedação ao confisco; compatibilidade entre valores venais e valores de mercado; eventual “empilhamento” de cargas em operações de elevada expressão econômica.

 

 

5. Conclusão

 

A Reforma Tributária do consumo, tal como concretizada pela EC 132/2023 e pela LC 214/2025, inaugura um novo paradigma para a tributação das operações imobiliárias no Brasil. Ao mesmo tempo em que insere o setor na lógica de um IVA moderno, com não cumulatividade financeira e crédito amplo, o legislador buscou desenhar um regime específico capaz de mitigar distorções típicas do mercado de imóveis, por meio de redutores de alíquotas, deduções e mecanismos voltados a tributar prioritariamente a valorização imobiliária.

Não obstante a sofisticação técnica do modelo, é inegável que o novo regime traz desafios significativos para incorporadoras, loteadoras, investidores, administradoras, corretores e mesmo para pessoas físicas com carteiras relevantes de locação. A correta compreensão da sistemática de IBS/CBS nas operações imobiliárias deixa de ser um detalhe tributário e passa a integrar o núcleo de decisões estratégicas na estruturação de empreendimentos, contratos e veículos patrimoniais.

Do ponto de vista jurídico, abre-se um campo fértil de discussão doutrinária e jurisprudencial, que abrangerá desde a interpretação dos redutores e dos conceitos de contribuinte até a análise da compatibilidade constitucional das novas bases e regimes especiais. Nesse cenário, o profissional do Direito imobiliário e tributário é chamado a atuar não apenas como litigante, mas como engenheiro institucional, capaz de antecipar riscos, construir soluções contratuais robustas e dialogar criticamente com o novo arranjo fiscal.

 

 

 

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AUTOR: Carlos Eduardo Melo Bonilha. Advogado (OAB/PR nº. 115.107). Bacharel em direito pela Universidade Federal do Paraná. Pós-graduando em Direito e Processual Civil Contemporâneo (ESA/OAB SP). Pós-graduando em Gestão e Business Law (Fundação Getúlio Vargas).  Membro da Comissão de Direito Processual Civil da Ordem dos Advogados do Brasil subseção Paraná

 

Referencias:

BRASIL. Constituição (1988). Emenda Constitucional nº 132, de 20 de dezembro de 2023.

BRASIL. Lei Complementar nº 214, de 16 de janeiro de 2025. Institui o IBS, a CBS e o Imposto Seletivo e cria o Comitê Gestor do IBS.

 

 

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