O cenário imobiliário brasileiro testemunha uma crescente procura por modelos de aquisição que se sintonizam com novas dinâmicas de uso e investimento, especialmente no segmento de imóveis voltados para lazer e turismo. Nesse contexto, a multipropriedade imobiliária emergiu como uma alternativa notável, permitindo que múltiplos indivíduos compartilhem a propriedade de um bem, usufruindo-o de forma exclusiva por períodos pré-determinados ao longo do ano.
Antes da Lei nº 13.777, de 20 de dezembro de 2018, a prática da multipropriedade operava em um ambiente de considerável insegurança jurídica. A ausência de uma regra geral específica para o instituto gerava incertezas quanto à sua natureza jurídica e aos direitos efetivos dos adquirentes, frequentemente confundidos com modelos meramente contratuais como o time-sharing (tempo compartilhado). Essa carência normativa limitava o potencial de desenvolvimento do mercado e expunha os consumidores a riscos.
A promulgação da Lei nº 13.777/18 representou um marco decisivo. Ao alterar o Código Civil e a Lei de Registros Públicos, a norma delineou de forma clara o regime jurídico da multipropriedade, conferindo-lhe o status de direito real e estabelecendo regras essenciais para sua estruturação e funcionamento.
Portanto, este artigo tem como objetivo analisar como essa legislação transformou o panorama da multipropriedade no Brasil, com foco especial nos reflexos práticos observados no Registro de Imóveis e no fortalecimento da segurança jurídica para o multiproprietário.
1. A Multipropriedade antes da Lei 13.777/18: Insegurança e Desafios Jurídicos
O conceito fundamental da multipropriedade – a divisão temporal do direito de uso e gozo de um imóvel – já era aplicado no mercado brasileiro antes da Lei 13.777/18. Contudo, essa aplicação ocorria em um limbo jurídico. As operações eram geralmente estruturadas com base em contratos atípicos ou sob a forma de cotas de clubes de férias, modelos que não conferiam ao adquirente a propriedade do imóvel, mas sim um direito de uso temporário.
Ou seja: quem comprava, na verdade, não se tornava dono do imóvel, mas ganhava o direito de usá-lo por um tempo – e só. Isso criava um cenário confuso e inseguro.
A natureza jurídica da relação entre o comprador e o imóvel não era bem definida, a publicidade dos negócios era limitada e a proteção ao consumidor ficava restrita ao que estivesse previsto em contrato – muitas vezes, redigido de forma desequilibrada e com pouca transparência. Além disso, em situações como a falência da empresa vendedora ou conflitos entre os coproprietários, era comum o surgimento de litígios.
Além disso, havia confusão com relação ao chamado time-sharing, sistema semelhante, mas que concede apenas um direito pessoal de uso por tempo determinado, sem qualquer vínculo com a propriedade do imóvel. Na multipropriedade, por outro lado, o adquirente passa a deter um direito real, registrado em cartório, o que o torna, de fato, coproprietário do bem. Essa diferença, no entanto, não era claramente compreendida ou reconhecida na prática antes da entrada em vigor da lei.
2. A Lei 13.777/18: Reconhecimento e Natureza Jurídica
A Lei nº 13.777, sancionada em 2018, trouxe importantes inovações ao ordenar e reconhecer, de forma expressa, a multipropriedade imobiliária como um direito real no ordenamento jurídico brasileiro. Essa regulamentação se deu por meio da inclusão dos artigos 1.358-B a 1.358-U no Código Civil, além da alteração dos artigos 176 e 178 da Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/73).
Antes dessa lei, a multipropriedade já era praticada na realidade do mercado imobiliário, principalmente em empreendimentos voltados ao turismo e ao lazer. No entanto, não havia um regramento específico que garantisse segurança jurídica às partes envolvidas. Com a nova legislação, essa lacuna foi suprida, permitindo que a multipropriedade deixasse de ser tratada como mera relação contratual e passasse a ser formalmente reconhecida como um direito real, ou seja, um vínculo direto e permanente do titular com o bem imóvel, que pode ser registrado em cartório e é válido contra terceiros.
Na prática, a multipropriedade funciona como uma espécie de condomínio, mas com uma característica própria: em vez de dividir o imóvel fisicamente entre os proprietários, divide-se o tempo de uso. Cada multiproprietário adquire o direito de utilizar o imóvel por um ou mais períodos determinados durante o ano, com exclusividade e alternância entre os demais proprietários. A propriedade, portanto, é compartilhada, mas o uso é individualizado por tempo, o que permite que todos usufruam do bem sem conflitos de posse.
Além de reconhecer essa nova forma de propriedade, a Lei nº 13.777/18 também estabeleceu regras claras sobre como a multipropriedade deve ser instituída, registrada e administrada. Determinou os direitos e deveres dos multiproprietários, as regras para deliberação coletiva, os procedimentos para transferência da fração de tempo e a forma de administração do imóvel, o que trouxe mais organização e previsibilidade para todas as partes envolvidas.
Com isso, a legislação deu um passo importante para acompanhar a evolução das relações de consumo e da dinâmica do mercado imobiliário, especialmente em regiões onde a utilização compartilhada de imóveis é economicamente vantajosa. Mais do que isso, garantiu segurança jurídica para empreendedores e adquirentes, conferindo legitimidade e estabilidade a esse modelo de propriedade, que já vinha sendo adotado na prática, mas carecia de respaldo legal.
Em resumo, a Lei nº 13.777/2018 não apenas reconheceu a multipropriedade como uma nova modalidade de direito real, mas também regulamentou todos os aspectos essenciais ao seu funcionamento, tornando o instituto mais seguro, transparente e acessível.
3. Impactos Práticos no Registro de Imóveis
Um dos efeitos mais relevantes da Lei nº 13.777/2018 se deu no campo prático do Registro de Imóveis, que passou a ter papel fundamental na formalização da multipropriedade. A partir da nova legislação, a validade e a eficácia plena desse regime jurídico dependem do registro da multipropriedade na matrícula do imóvel, no cartório competente. Esse registro é condição essencial para que o direito real seja reconhecido legalmente e produza efeitos perante terceiros.
Esse procedimento registral confere publicidade ao ato e assegura segurança jurídica às partes envolvidas. Com a multipropriedade regularmente registrada, o direito do titular à fração de tempo passa a ser protegido contra eventuais questionamentos de terceiros, além de possibilitar sua utilização como garantia, sua transferência e até mesmo a execução em caso de inadimplência.
Um dos grandes avanços trazidos pela lei foi a previsão de que, além da averbação da instituição da multipropriedade na matrícula principal do imóvel — conhecida como matrícula “mãe” — devem ser criadas matrículas individualizadas para cada fração de tempo. Isso significa que cada período de uso exclusivo detido por um multiproprietário passa a ter um registro próprio, com autonomia para fins registrais e negociais.
Nessas matrículas individualizadas serão lançadas todas as informações relevantes, como o nome do titular, a descrição do período de uso, a existência de eventuais ônus ou gravames, e os registros de futuras cessões ou transmissões de direitos, oferecendo transparência e praticidade, tanto para os adquirentes quanto para os próprios cartórios, uma vez que facilita a gestão e o acompanhamento de cada fração de maneira organizada e segura.
Para os oficiais de registro, a implementação desse novo regime representou um desafio inicial, já que exigiu adequações procedimentais e a compreensão de uma nova lógica jurídica e registral. Contudo, com o tempo, a prática cartorária vem se ajustando, especialmente por meio de capacitações promovidas por associações de registradores e órgãos técnicos, que têm buscado uniformizar os entendimentos e garantir maior eficiência na aplicação da norma.
De modo geral, a lei trouxe avanços concretos, ao alinhar a realidade registral à nova modalidade de propriedade. Ao reconhecer a multipropriedade como direito real e exigir seu devido registro, fortaleceu-se o sistema registral brasileiro, garantindo maior proteção jurídica para os envolvidos e contribuindo para a consolidação desse modelo no mercado imobiliário nacional.
4. Segurança Jurídica para o Multiproprietário à Luz da Nova Lei
Com o reconhecimento legal e o devido registro, a multipropriedade passou a conferir aos coproprietários um patamar inédito de segurança jurídica. A legislação vigente disciplina, de forma objetiva, os direitos e deveres dos multiproprietários, oferecendo um referencial seguro para a convivência harmoniosa no âmbito do condomínio.
Entre os principais direitos assegurados, destaca-se a possibilidade de uso e fruição exclusiva do imóvel durante o período correspondente à fração de tempo adquirida. A norma também regulamenta a responsabilidade pelas despesas condominiais e de manutenção, determinando sua repartição proporcional entre os coproprietários.
A segurança jurídica se estende à possibilidade de o multiproprietário dispor de sua fração de tempo, podendo vendê-la, doá-la ou deixá-la como herança, com o direito de preferência aos demais condôminos. A lei também oferece mecanismos legais para a resolução de conflitos e trata da inadimplência, permitindo, em último caso e na forma da lei processual civil, a adjudicação da fração do multiproprietário inadimplente ao condomínio edilício.
Ademais, a interação da norma com o Código de Defesa do Consumidor reforça a proteção do adquirente contra eventuais práticas abusivas, ampliando as garantias legais no contexto da multipropriedade.
5. Desafios na Aplicação da Lei e Perspectivas Futuras
Apesar dos avanços proporcionados pela Lei nº 13.777/2018, sua aplicação prática ainda apresenta desafios relevantes. Um dos principais pontos é a uniformização dos procedimentos registrais em todos os cartórios do país, processo que segue em evolução e requer padronização técnica e administrativa.
Outro aspecto crucial é a necessidade de educação do mercado quanto aos preceitos legais que regem a multipropriedade. Promotores de vendas, incorporadores, corretores e consumidores ainda demandam maior familiarização com o instituto, de modo a assegurar negociações mais transparentes, conscientes e alinhadas à legislação.
A comercialização das frações no mercado secundário também desperta atenção, especialmente quanto à sua liquidez. Embora a segurança jurídica conferida pela norma represente um fator positivo, esse segmento ainda depende de amadurecimento institucional e da consolidação de práticas comerciais eficientes.
Adicionalmente, observa-se que a jurisprudência sobre o tema ainda está em construção, o que pode demandar, em determinadas situações, a intervenção do Poder Judiciário para suprir lacunas interpretativas ou esclarecer pontos controversos da norma.
Ainda assim, as perspectivas para a multipropriedade no Brasil são promissoras. A existência de um marco legal robusto tende a estimular investimentos no setor, promovendo maior confiabilidade jurídica e proteção ao consumidor. A exigência legal de gestão profissional dos empreendimentos fortalece a governança e contribui para a sustentabilidade do modelo, assegurando maior satisfação aos multiproprietários e fomentando o desenvolvimento do setor no longo prazo.
Conclusão
A Lei nº 13.777/18 representou um avanço forte no mercado de multipropriedade imobiliária brasileiro. Ao conferir o status de direito real ao instituto e estabelecer regras claras para seu registro e funcionamento, a legislação dissipou grande parte da insegurança jurídica existente e elevou o nível de proteção para os adquirentes de frações.
Os impactos práticos no Registro de Imóveis, com a obrigatoriedade do registro da instituição e a abertura de matrículas individualizadas por fração de tempo, são garantias concretas da propriedade e facilitam a circulação desses bens no mercado. Embora alguns desafios na aplicação prática ainda persistam, o arcabouço legal aportado pela lei é um pilar essencial para o desenvolvimento saudável e transparente da multipropriedade no Brasil, tornando-a uma opção cada vez mais segura e atrativa para quem busca o sonho do imóvel de lazer compartilhado com segurança jurídica.
Em última análise, a correta formalização do regime de multipropriedade, acompanhada de assessoria jurídica especializada, é essencial para garantir a segurança das operações, proteger os interesses dos adquirentes e assegurar a estabilidade das relações jurídicas envolvidas. Trata-se de um passo estratégico para consolidar um modelo de propriedade compartilhada eficaz, transparente e juridicamente seguro, contribuindo para a valorização do imóvel e para o desenvolvimento sustentável do mercado imobiliário.
Se você tiver dúvidas quanto à constituição, registro ou administração da multipropriedade, consulte um advogado especializado e busque a melhor estratégia para proteger seus interesses, garantindo a efetividade e a segurança jurídica do modelo adotado.
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Autora: Dra. GIOVANA RIBEIRO. Advogado (OAB/PR nº.115.485). Pós-graduada em Processo Civil pelo Centro Universitário Internacional – UNINTER. Bacharel em Direito pela UNOPET – Centro Universitário Opet.
Referências:
- Lei da Multipropriedade (Lei nº 13.777, de 20 de dezembro de 2018);
- Código Civil Brasileiro (Lei nº 10.406/2002) – Dispositivos sobre multipropriedade;
- Lei de Registros Públicos, Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973;
- O que é multipropriedade e como esse modelo mexe com o setor imobiliário. Disponível em https://g1.globo.com
- https://www.anoreg.org.br/site/artigo-multipropriedade-imobiliaria-inovacao-no-registro-de-imoveis-por-caio-ivanov/