Novos mercados para se atualizar: Títulos de crédito virtuais, existência e validade

Alguns institutos jurídicos têm uma relevância no seio da sociedade que os tornam mais visíveis e, consequentemente, mais importante dentro do ordenamento jurídico. Este é o caso dos títulos de crédito, os quais, ao lado do direito societário, tiveram e têm um papel de destaque na estruturação, funcionamento e desenvolvimento do capitalismo.

Isto porque, os títulos de crédito possibilitam e, principalmente, dão segurança jurídica à circulação do próprio crédito, permitindo assim maior velocidade e menor burocracia à transferência das riquezas. É importante mencionar que foi através dos títulos de crédito que surgiram as primeiras transações bancárias e também cambiárias e há mesmo quem defenda que os atuais títulos e valores mobiliários devem sua evolução aos títulos de crédito.

Neste diapasão, mostra-se redundante ressaltar a relevância das cédulas de crédito para a atividade bancária moderna, de forma que é fácil concluir pela importância deste instituto jurídico.

Por outro lado, por terem essa notável relevância, os títulos de crédito também são frequentemente instados a se modificarem, seja para criarem-se novos tipos de títulos, seja para alterarem regras dos já existentes, ou ainda para tornar mais moderna a doutrina e legislação

Neste aspecto, a revolução tecnológica tem imposto forte pressão sobre o direito cambiário para que este se adapte à nova era virtual, tornando possível não só a sobrevivência de seus institutos nesta nova conjuntura, mas tornando possível que eles se mantenham como pilares da economia, dando novamente segurança e agilidade às transações comerciais, como sempre o fizeram.

Sendo assim, parece-nos que é imprescindível para a sobrevivência do direito cambiário a sua conformação ao comércio eletrônico, de forma a permitir o uso das cambiais no novo ambiente virtual. Aliás, a legislação, tanto pátria quanto estrangeira, já tem se orientado neste sentido, acompanhando as diletas vozes doutrinárias que neste sentido ecoam.

Desta forma, este nosso estudo pretende perquirir qual a posição atual do Direito Brasileiro com relação aos títulos de crédito virtuais, especialmente para saber se estes têm existência e validade.

Neste espeque, nosso objetivo será demonstrar que a teoria e legislação vigentes aceitam e possibilitam o uso dos títulos de crédito eletrônicos sem necessidade de adaptação ou negligência dos princípios e regras atuais.

Para tanto, faremos esse paralelo impróprio com a escada ponteana, para refletir sobre a existência e validade dos títulos virtuais. Neste sentido, analisaremos os posicionamentos doutrinários e dispositivos legais sobre o tema, de forma a entender se os documentos eletrônicos realmente podem ser considerados documentos jurídicos, bem como ponderando a validade da assinatura digital, com o uso dos certificados digitais.

Apesar desta base teórica e legislativa onde queremos nos apoiar, tencionaremos ir além, sustentando que, pela mesma forma que já se aceita no ordenamento jurídico a assinatura de contratos pela forma digital, também haverá de se aceitar a assinatura nos títulos de crédito, inexistindo, assim, óbice à imediata utilização desta nova forma cambiária, diante do arcabouço legislativo em vigência.

Para trilharmos este ambicioso caminho, analisaremos detidamente a história e evolução dos títulos de crédito, posto que entendemos ser crucial, que, para propormos e entendermos o desenvolvimento de um instituto jurídico, saibamos as suas origens, motivação e alterações que já sofreu durante sua evolução. Adentraremos também na conceituação, caracterização e análise dos atributos dos títulos de crédito, posto que imprescindível para qualquer pesquisa que aborde o proposto tema.

Teremos ainda que abordar a teoria do documento, para analisar a existência do título de crédito virtual, posto que este não tem manifestação material (ou mesmo física, no sentido de ser palpável); cabendo-nos questionar a possibilidade de um documento existir apenas no mundo dos “bits” de um computador.

Deveremos também analisar as novas disposições legais sobre a assinatura digital, seus requisitos e possibilidades de uso para definirmos se, contendo tal assinatura, o título virtual poderá ter a sua validade defendida, para que venha a ter algum efeito jurídico.

Para chegar a tanto, utilizaremos a pesquisa bibliográfica como fonte principal, através de livros, revistas especializadas, legislação, textos da rede mundial de computadores e jurisprudência nacional.

Tentaremos, sempre que possível, utilizar uma abordagem relacionada à legislação vigente, de forma a demonstrar que as idéias esposadas têm cabimento dentro do direito positivo.

Para orientar o leitor, utilizaremos os termos título de crédito, cambial e cambiariforme como indistintamente sinônimos.

As traduções existentes no texto foram livremente feitas por nós, assim como os grifos das citações correspondem aos originais, salvo os casos em que expressamente avisaremos.

1. OS TÍTULOS DE CRÉDITO

Este capítulo será dedicado ao estudo do surgimento dos títulos de crédito, suas características, princípios e atributos e também ao entendimento dos conceitos, princípios e fundamentos dos mesmos, para entendermos a gênese e os pilares deste instituto jurídico.

1.1. ORIGEM E EVOLUÇÃO DOS TÍTULOS DE CRÉDITO NA HISTÓRIA

Não obstante alguns autores formularem opiniões de que existiam formas embrionárias dos títulos de crédito na China Antiga ou mesmo na Grécia, a grande maioria concorda que os títulos de crédito começam a tomar a forma que vieram a ter na atualidade na Idade Média.

Em verdade, neste período é que surge a letra de câmbio, que foi a primeira cambial a ser criada.

A doutrina divide a história da letra de câmbio em três fases, a saber, italiana, francesa e alemã.

A primeira, italiana, é a base do surgimento dos títulos de crédito e ocorreu diante da conjunção de diversos fatores.

Para analisar estes fatores precisamos lembrar do momento histórico vivido na Idade Média, especialmente na Itália, onde existiam, em verdade, diversos pequenos Estados independentes entre si, tendo cada um a sua própria moeda. Só de olhar para o mapa da península itálica da época podemos imaginar a dificuldade vivida pelos comerciantes diante dos incontáveis “países” que existiam.

Por outro lado, nesta mesma época, a insegurança era grande e os assaltos nas estradas bastante frequentes. Importante lembrar que essa insegurança, de certa forma, também decorria da fragmentação dos Estados, pois cada soberano apenas assegurava os domínios que estavam dentro dos muros das Cidades-Estados, deixando à própria sorte os caminhos dos comerciantes.

Devemos também mencionar que o comércio, enquanto atividade econômica organizada, ainda estava nos seus primeiros passos, de forma que ainda não tinha a importância e influência de que hoje goza para reivindicar a melhoria da segurança e/ou unificação das moedas.

Neste sentido, clarifica a doutrina de Wille Duarte Costa, a qual informa que a situação de dificuldade vivida pelos comerciantes era insuportável. A quantidade de cidades, moedas e a insegurança dos trajetos, continua o autor, gerava prejuízos insuportáveis aos burgueses.

A solução encontrada para os problemas, pelos comerciantes foi, ao invés de levarem consigo as moedas para realizar o câmbio no destino, depositar as quantias no banco do país de origem e o banqueiro emitia uma carta (em italiano lettera), informando ao banco do destino que pagasse ao comerciante o valor ali discriminado.

Neste sentido:

“Ante as dificuldades e perigos que oferecia o transporte de valores e materiais preciosos de um ponto a outro dos territórios, e especialmente pelo mar, em épocas de proliferação da pirataria, a solução encontrada foi o depósito do dinheiro nas casas bancárias”.

Surgia, assim, a carta (ou letra) de câmbio, que nada mais era que um instrumento de segurança aos comerciantes, para que não precisassem carregar valores pelas perigosas estradas, bem como para facilitar o intrincado sistema de câmbio que existia à época.

Com o recrudescimento do comércio e do crédito, essas letras de câmbio passaram a ser cada vez mais utilizadas.

Ocorre que, por muitas vezes, o beneficiário do crédito não queria ir ao banco para sacar a importância, mas queria de logo usar a própria carta para “passar” o crédito, acelerando a sua transação e ganhando, assim, mais tempo para adquirir e vender mais mercadorias.

Essa possibilidade foi abraçada, primeiramente, pelo Direito Francês, em 1673, quando a Ordenança de Comércio passou a aceitar a letra de câmbio como instrumento de pagamento. Surgiu então o endosso e a cláusula à ordem, que permitiam que o beneficiário de uma letra a usasse como meio de pagamento, entregando-a a terceiro como se dinheiro fosse.

Entretanto, ainda nesta fase francesa a letra continuava vinculada a um depósito ou outro contrato junto ao banco emissor, negócio que servia de lastro à mesma e, por conseguinte, dava-lhe validade.

Somente na fase alemã, que registra-se em meados do século XIX, foi que a letra de câmbio desvinculou-se de qualquer negócio jurídico subjacente, podendo ser emitida por qualquer motivo, bastando-lhe apenas as assinaturas e os requisitos formais prescritos em lei.

Nesta fase, a letra já apresenta os principais atributos hodiernos dos títulos de crédito, demonstrando, assim, que a evolução e maturidade do instituto sempre esteve ligada à necessidade do comércio e da economia.

Ocorre que os títulos de crédito assumiram importância e aceitação tamanha que na Convenção de Genebra, em 1930, diversos países assinaram a Lei Uniforme de Genebra, que unificou as disposições normativas dos países signatários sobre a letra de câmbio e a nota promissória.

Vemos assim, que ainda no século passado a legislação dos títulos de crédito tendia a avanços significativos com a uniformização de leis entre diversos países, numa situação sem precedentes, porém sempre contribuindo com o recrudescimento da atividade econômica e fortalecimento do crédito.

1.2. PRINCÍPIOS, CARACTERÍSTICAS E ATRIBUTOS DOS TÍTULOS DE CRÉDITO

“Título de crédito é o documento necessário para o exercício do direito literal e autônomo nele mencionado”este conceito de Cesare Vivante é unanimemente aceito pela doutrina como o melhor para definir com precisão o instituto.

Esta definição, em seu bojo, já elenca os principais atributos dos títulos de crédito, quais sejam a cartularidade (documento necessário), a literalidade (direito literal) e autonomia (autônomo).

Ainda explica o autor que:

“Diz-se que o direito mencionado no título é literal porquanto ele existe segundo o teor do documento. Diz-se que o direito é autônomo, porque a posse de boa-fé enseja um direito próprio, que não pode ser limitado ou destruído pelas relações existentes entre os procedentes possuidores e o devedor. Diz-se que o título é o documento necessário para exercitar o direito, por que enquanto o título existe o devedor deve exibi-lo para exercitar todos os direitos, seja principal, seja acessório, que ele porta consigo e não se pode fazer qualquer mudança na posse do título sem anotá-la sobre o mesmo. Este é o conceito jurídico, preciso e limitado que deve substituir-se à frase vulgar pela qual se consigna que o direito está incorporado no título”.

Vale mencionar que o conceito apresentado pelo doutrinador italiano afasta a ideia que já existiu de que a cártula incorporava o direito do crédito, posição que, atualmente, seria impossível defender, posto que em sendo o direito de crédito subjetivo, ele está vinculado às relações entre pessoas e não incrustado em coisas. Aliás, o próprio Vivante já ressaltava tal questão, que era controversa à época, dada a teoria de Savigny sobre a incorporação, como bem nos informa Newton de Lucca.

Vale dizer que, se o direito estivesse na cártula, a perda da mesma seria a perda do direito, porém é incontroverso que mesmo perdida a cártula, pode o credor cobrar o seu débito, provando-o de outra maneira (ele apenas perderá as vantagens do título de crédito, como possibilidade de endosso, executividade, etc) ou com a emissão de outro título. Ainda, frisamos que, no caso da duplicata, a perda ou mesmo inexistência do título original não impede sequer a execução do crédito, dadas as disposições legais que permitem suprir a cártula por outros documentos.

Sendo assim, não obstante o claro e sintético conceito apresentado, deveremos aprofundar nas características dos títulos de crédito, de forma a permitir melhor entendimento dos mesmos, como passamos a fazer de forma individual.

1.2.1. Cartularidade

A cartularidade é o princípio cambiário pelo qual exige-se a existência e apresentação do documento para comprovação do direito creditório.

Ou seja, para a existência do título de crédito é necessária a existência da cártula, sendo esta o documento que contém a descrição da obrigação creditícia.

Vale frisar, novamente, como já mencionado quando detalhamos o conceito de título de crédito de Vivante, que o direito cambiário não está incrustado na cártula, mas esta é a representação dele e só por ele pode ser exercido o direito cambiário.

Desta forma, aquele que perde a cártula não perderá o seu crédito, necessariamente, mas poderá perder as vantagens que o título de crédito lhe oferece.

Também pelo princípio da cartularidade, o devedor do título só deverá pagar o mesmo a quem o apresente-lhe para quitação. Neste ponto, devemos lembrar que as obrigações cambiárias são, em regra, querables, ou seja, o credor deverá ir ao devedor exigir seu pagamento.

Sendo assim, ao ir exigir a quitação do crédito, deverá o credor apresentar o documento, devendo ainda o devedor exigir a entrega do título após a quitação do débito.

Podemos assim sintetizar que pela cartularidade, vinculamos a obrigação cambiária ao documento representativo da mesma, ao qual denominamos título de crédito, passando este documento a ser obrigatório nos futuros atos sobre o crédito.

Neste sentido bem sintetiza Newton de Lucca ao mencionar que o documento é imprescindível ao exercício do direito cambiário, porém este documento também deverá estar apto à exigência deste direito (neste sentido, o citado autor vincula os princípios cambiários, pois deverá ser apresentado o documento, mas este deverá conter o direito literal e autônomo).

Este princípio é o que mais causa resistência à adoção dos títulos de crédito virtuais, entretanto, esta resistência parece-nos descabida, pois, como demonstraremos, a mesma se fundamenta na não aceitação dos arquivos digitais como documentos. Este pensamento deriva do entendimento de que apenas os impressos ou escritos em papel são documentos, noção que remonta ao surgimento dos títulos de crédito, no final da Idade Média, quando apenas o papel produzia documentos.

Por outro lado, existem opiniões no sentido de que o princípio da cartularidade não é compatível com a atual realidade eletrônica, pelo que deverá, gradativamente, ser reduzido até o total esquecimento. Discordamos frontalmente destas posições, posto que entendemos pela compatibilidade da cartularidade com os títulos eletrônicos como demonstraremos alhures.

Sendo assim, não obstante a cartularidade ainda ser um princípio fundamental e importante no direito cambiário, o mesmo tem de ser adaptado aos novos conceitos e mesmo tem sido relativizado em alguns pontos, para permitir a melhor facilidade nas negociações e circulação do crédito, o que parece-nos ser a vocação primeira das cambiais.

1.2.2. Literalidade

Pela literalidade, complementamos a cartularidade, acrescentando que além da necessidade de apresentação do documento, a obrigação cambial restringe-se aos exatos termos constantes do título. Aqui, cabe-nos transcrever a síntese de Tullio Ascarelli:

“O direito decorrente do título é literal no sentido de que, quanto ao conteúdo, à extensão e às modalidades desse direito, é decisivo exclusivamente o teor do título.”

Sendo assim, a obrigação creditícia deverá estar claramente exposta e escrita na cártula, sendo que somente o que assim estiver integrará o título de crédito.

A literalidade, desta forma, impõe que todas as obrigações e atos pertinentes aos títulos sejam-lhes inscritos, sob pena de inexistência. Por isso, os endossos, avais e mesmo quitações parciais, têm de ser escritos na cambial, para evitar o não conhecimento.

Este princípio, então, visa à segurança jurídica quando da circulação do título, posto que aquele que negocia sabe que terá direito apenas ao quanto consignado no título. Já o devedor, por sua vez, sabe que será apenas obrigado pelo quanto inscrito na cártula.

Sintetizando, temos que, de acordo com o princípio da literalidade, todos os direitos e obrigações cambiários serão aqueles escritos no título de crédito, ou na melhor definição de Newton de Lucca, “a literalidade visa à subordinação dos direitos cartulares unicamente ao ‘teor da escritura’, atribuindo relevância jurídica somente aos elementos expressos na cártula”.

1.2.3 Autonomia

Este talvez seja o princípio mais importante dos títulos de crédito, posto que é aquele que fundamenta a sua facilidade de circulação, permitindo assim a facilitação do crédito.

De acordo com o princípio da autonomia, o título de crédito não se vincula à obrigação que lhe deu causa. Ou seja, uma vez emitida a cártula, esta desprende-se da relação de direito originária (comumente chamada de relação jurídica subjacente ou apenas relação subjacente), tendo existência separada.

Sendo assim, se um determinado sujeito emite um cheque para honrar o pagamento de uma compra e venda realizada, este cheque, embora emitido para quitar o preço do bem, desprende-se desta relação subjacente e poderá, em muitos casos, ser cobrado mesmo que a compra e venda venha a ser anulada ou mesmo rescindida.

Além disso, temos que se uma das obrigações inscritas no título for inválida, as demais subsistirão, dada a independência entre as mesmas.

A justificativa desta autonomia está, segundo a balizada lição de Newton de Lucca na natureza constitutiva do título de crédito, ou seja, como o título de crédito constitui uma obrigação creditícia e esta é autônoma à causa da emissão deste título, ambas passam a ter vida própria (a causa e o título).

Neste ponto é ilustrativo o exemplo do aval. O aval é o ato cambiário pelo qual outrem garante o pagamento do título ao lado do sacado. Pelo princípio da autonomia, ainda que o título emitido possa ser anulado, como no caso de ter sido emitido por menor incapaz, persistirá a obrigação do avalista que terá de satisfazer o crédito.

Muitos doutrinadores dividem a autonomia em dois outros princípios, quais sejam a abstração e a inoponibilidade de exceção pessoal. Neste aspecto, preferimos adotar o posicionamento de Fábio Ulhoa, considerando estes como meros desdobramentos da autonomia, que em verdade apenas ilustram e delimitam o significado do princípio, pelo que os denominaremos de subprincípios.

Sendo assim, pelo subprincípio da abstração, uma vez que o título de crédito é posto em circulação, o mesmo desprende-se da relação jurídica subjacente. Como já exemplificamos, no caso da compra e venda, ainda que o contrato de compra e venda venha a ser desfeito ou mesmo anulado, se o título de crédito circular, este não restará desfeito ou anulado.

Já a inoponibilidade de exceção pessoal, como o próprio nome já prenuncia, impede que o devedor da cambial utilize-se de defesa ligada à relação subjacente ou à sua relação com o primeiro credor, quando cobrado por terceiro que recebeu o título de boa-fé.

Voltando, assim, ao exemplo da compra e venda, supondo que o bem objeto do negócio estava viciado e, tendo o comprador denunciado o contrato, se um terceiro de boa-fé apresentar o título para pagamento, deverá o devedor solvê-lo, independentemente da querela contratual. Neste caso, poderá o devedor valer-se apenas das defesas ligadas ao título (prescrição, nulidade do título), não podendo opor exceções pessoais.

Vale frisar que a inoponibilidade também imprescinde da circulação da cártula, posto que, em sendo a exceção fundada na relação entre o credor e o devedor, esta sempre poderá ser alegada na defesa deste, dada a ampla defesa.

Por outro lado a inoponibilidade exige a boa-fé do terceiro, sendo que esta presume-se violada pelo simples conhecimento prévio, por este terceiro, da exceção; ou seja, no exemplo que já veiculamos, se o terceiro teve conhecimento da rescisão contratual, estará violada a má-fé, cabendo, contudo, ao devedor prová-la.

Pelo exposto, vemos que os princípios dos títulos de crédito, em verdade, visam conferir a estes a fácil circulação do crédito, aliada à segurança jurídica, por isto temos que deverá o credor portar o documento, somente os direitos inscritos neste documento é que poderão ser cobrados e estes direitos, quando circulam no mercado, desvinculam-se do negócio jurídico subjacente.

1.2.4. Atos Cambiários

Não obstante o tema deste estudo prescindir da análise apurada dos atos cambiários, devemos fazer referência, ainda que sucinta aos mesmos, para possibilitar e facilitar o entendimento do leitor aos termos utilizados. Ressaltamos, todavia, que apenas apresentaremos breves conceituações dos mesmos com o objetivo único de viabilizar a compreensão do leitor.

Os principais atos cambiários e que, ao nosso ver, necessitam de alguma explicação para este estudo são o saque, aceite, endosso, aval e protesto.

O saque nada mais é que a emissão do título de crédito e se caracteriza pelo preenchimento dos requisitos legais e assinatura do título. No saque, definem-se o sacado, sacador e tomador, que são os protagonistas de relação cambiária. O sacado é o devedor do título, aquele que o pagará. O sacador é aquele que emite o título e, em alguns casos, poderá mesmo ser o sacado (como, por exemplo, na nota promissória). Já o tomador é o beneficiário ou o credor originário da cambial.

O aceite é ato cambiário exclusivo das ordens de pagamento, que são os títulos em que uma pessoa ordena a outrem que pague determinada quantia, por isso, em razão da existência desta ordem, o tomador tem que apresentar o título ao sacado para que este aceite a ordem emitida. Resumindo, o aceite é a concordância do devedor com a ordem emitida pelo sacador.

Já o endosso é a cessão do título de crédito, ou seja, é o ato pelo qual transfere-se o direito de crédito inerente à cártula. Este ato é fundamental ao direito cambiário, posto que permite a circulação do crédito.

Neste ponto, devemos relembrar que, pelo princípio da abstração, quando o título é endossado, desprende-se da relação subjacente.

Devemos lembrar ainda que, via de regra o endossante também fica responsável pelo pagamento do título. Desta forma, havendo uma cadeia de endosso, o beneficiário final poderá cobrar o crédito de qualquer dos antecedentes, salvo se algum deles, ao endossar, o fez sem garantia (mediante a inscrição da expressão “pague-se, sem garantia a” ou similar).

Outrossim, o endosso também prescinde de prévia notificação ao devedor, relembrando-se que este não pagará para que o título foi emitido e, sim, àquele que lhe apresentar o título, com base na cartularidade.

Vemos, por isso, que a disciplina do endosso, aliada aos princípios cambiais permite a fácil circulação do crédito, dispensando formalidades de notificação ao devedor, bem como dando mais segurança a quem adquire o crédito.

Por fim, temos o protesto que é o ato formal e solene pelo qual se prova algum fato relevante sobre o título de crédito. Para entendermos o protesto, temos que lembrar que as cambiais são obrigações querables, de forma que o credor sempre tem o dever de cobrá-la do devedor.

Sendo assim, o protesto é o ato pelo qual o credor dá publicidade ao descumprimento de alguma obrigação por parte do devedor. Isto porque, apresentado ao protesto o título, o cartório intima o devedor para apresentar as suas razões e só depois efetiva o protesto.

O protesto pode ser feito por falta de aceite, falta de devolução do título ou mesmo por falta de pagamento, sendo este último a esmagadora maioria do que vemos na prática.

2. A EXISTÊNCIA DOS TÍTULOS DE CRÉDITO VIRTUAIS

De acordo com a nossa proposta apresentada de fazer um paralelo impróprio com a escada ponteana, iniciaremos debatendo se realmente existem os títulos de crédito virtuais. Na verdade, esta questão visa responder se as cambiais digitais podem ser chamadas de documentos e, se assim puderem, se as mesmas atendem ao princípio da cartularidade.

Vale frisar que a maior resistência aos títulos desmaterializados diz respeito a esta possível violação da cartularidade e à incerteza da existência do documento, dada a ausência do suporte em papel.

Sendo assim, estudaremos a teoria do documento e faremos um paralelo da mesma com a cartularidade.

2.1. A TEORIA E O CONCEITO DE DOCUMENTO

Pela definição amplamente aceita na doutrina de documento, entende-se que é o objeto do qual podemos extrair alguma informação ou declaração.

Na sua origem etimológica, documento deriva do latim, de doccere, que quer dizer ensinar, informar. Sendo assim, podemos entender que o intuito de qualquer documento é carregar uma mensagem ou informação.

Neste sentido, muitos estudiosos dividem o documento entre o a matéria, o meio e conteúdo. O matéria seria a materialidade do documento, ou seja, a manifestação do mesmo no mundo exterior. Na maioria das vezes, o suporte é o papel, dado que a escrita ainda é o meio mais eficaz de comunicação do homem. Entretanto, tal não é a única, pois temos, por exemplo, as fotografias, cuja matéria é o filme fotográfico.

O meio é a forma de representação da mensagem do documento, que pode ser escrito ou figurativo.

Já o conteúdo é, exatamente, a informação contida no documento. No caso dos documentos escritos, é a própria significação dos caracteres. Na foto, por outro lado, a mensagem é a própria imagem que se forma, a qual revela aquele dado instante flagrado pela câmera.

Convém frisar que, no exemplo trazido, propositalmente, da fotografia, existe uma confusão entre o que é a matéria. Isto porque, muitos pensarão que a matéria é a foto revelada, quando, em verdade, a matéria é o filme, no qual está, verdadeiramente inserida a mensagem. Desta maneira, a fotografia revelada é apenas uma reprodução do documento.

Este exemplo é bastante emblemático para a compreensão dos documentos digitais. Ora, se já nos desapegamos da ideia de que documentos são apenas os de papel, podemos entender que as informações geradas em computadores, também se traduzem em documentos.

Isto porque essas informações carregam mensagens e têm um suporte. O conteúdo é sempre o que está escrito ou demonstrado (pois muitas vezes teremos figuras ou imagens), já a matéria serão os bits que carregam a mensagem. Aqui temos o paralelo com a fotografia, posto que muitos atribuem a matéria à mídia que carrega os bits, que pode ser um disco rígido, um CD ou mesmo um pen drive. Porém, na verdade, a matéria são os bits, que estão dentro destes meios e que, estes sim, carregam a mensagem.

Com estas ideias,

“Apoiando-se na definição de documento de Carnelutti, é fácil inferir que a teoria dos documentos não apresenta qualquer restrição a sua desmaterialização. Mesmo considerando que a ideia de documento tende a identificar-se com um texto redigido por escrito, não mais subsiste a necessidade de base física papel. Quando Vivante adotou a remissão a documento, abriu a possibilidade para que o direito pudesse ser contido em qualquer suporte material – desde que represente uma coisa que possa fazer conhecer um fato.”[45]

Sendo assim, temos que é perfeitamente possível enquadrarmos os documentos digitais dentro do conceito jurídico de documento sem necessidade de nenhuma “ginástica” ou flexibilização do conceito original.

Pelo conceito de Vivante temos que título de crédito é documento, por isto, temos que concluir que, em sendo os títulos de crédito virtuais documentos digitais criados em computador, estes são documentos, na acepção jurídica da palavra, que têm assim existência no ordenamento jurídico.

2.2. A CARTULARIDADE E OS DOCUMENTOS DIGITAIS

Como já vimos, a cartularidade é princípio cambial que visa dar segurança ao título de crédito, face a possibilidade de circulação do mesmo. Ocorre que, uma vez que admitimos supra a existência dos títulos de crédito como documento, teremos que compatibilizá-los com a cartularidade.

Como já discutido, dado que os arquivos digitais são documentos que têm existência jurídica, não haveria, em princípio problema com relação à cartularidade, pois basta apresentar o documento virtual e satisfeita estaria a exigência. Entretanto, a principal característica dos documentos digitais é a facilidade de reprodução dos mesmos e a impossibilidade de determinar qual das cópias foi a primeira.

Sendo assim, criar-se-ia uma situação de insegurança, pois qualquer um poderia reproduzir a cártula e apresentá-la ao devedor reclamando o pagamento. Contudo, o legislador brasileiro já previu esta situação e criou um requisito ao título virtual para conferir-lhe segurança, prevendo que os títulos de crédito virtuais deverão ser sempre nominativos (§ 3º do artigo 889 do Código Civil).

O título nominativo é aquele que é emitido a determinado beneficiário (nominal) e ainda que este beneficiário é indicado na escrituração do emitente (artigo 921, Código Civil). Desta forma, aquele que emite o título sabe a quem tem de pagar. Além disso, para endosso do título nominativo é necessário termo, a ser registrado pelo emitente e assinado pelo endossante e pelo adquirente ou por endosso em preto em que conste o nome e assinatura do endossatário (artigos 922 e 923 do Código Civi.

Temos assim que os títulos virtuais devem sempre indicar o tomador, registrando-se, também, os endossos, de forma que fique claro ao devedor que aquele que está lhe apresentando o título é o seu credor.

Vale ressaltar que estas restrições impostas à circulação do título virtual, quais sejam a necessidade de nominação e endosso em preto, não mitigam a circulabilidade do crédito nem as vantagens da utilização da cambial, impondo, apenas, certos limites às mesmas em homenagem à segurança jurídica do ordenamento.

Uma das possibilidades de facilitação do uso dos títulos nominativos e consequente expansão dos títulos de crédito eletrônicos pode ser o exemplo do mercado de capitais, especialmente das ações nominativas. Vale dizer que o mercado de capitais foi pioneiro no uso do registro eletrônico de seus títulos e, atualmente, utiliza apenas esta forma de controle.

Assim poder-se-ia criar um órgão ou instituto, até mesmo administrado pelos Bancos, em conjunto com o Banco Central, como temos hoje a CETIP (Central de Custódia e Liquidação Financeira de Títulos) para os títulos privados do mercado de valores. Nesta proposição, toda vez que um indivíduo emitisse um título de crédito virtual, o mesmo seria registrado neste sistema eletrônico, o qual conteria o nome do tomador; ocorrendo endosso, este também constaria neste cadastro. Com esse sistema, inclusive, poder-se-ia possibilitar ao devedor efetuar o pagamento de forma eletrônica, facilitando ainda mais a adimplência do crédito.

Pelo exposto, temos que, ao apresentar a cártula digital o tomador terá de, necessariamente, estar indicado na mesma, originalmente ou por endosso, como beneficiário da mesma e, assim sendo, estará legitimado a receber do devedor o crédito correspondente. Essa comprovação poderá, ainda, ser ratificada através de uma instituição de custódia, para fortalecimento da segurança.

Vemos assim que não está arruinada a cartularidade, a qual tem apenas que sofrer as adaptações necessárias a essa nova era, aliás como assim está sendo com todos os institutos jurídicos relevantes.

3. VALIDADE DOS TÍTULOS DE CRÉDITO VIRTUAIS

Pelo que já vimos, não há óbice ao entendimento dos títulos de crédito virtuais como documentos, na acepção jurídica do termo, contatando-se, assim, que os mesmos existem no mundo jurídico; entretanto, precisamos saber se, existindo no mundo jurídico, tais títulos têm validade e se as assinaturas lançadas nestes títulos podem ser consideradas válidas. Ainda analisaremos, também, a questão da circulação e das possíveis fragilidades da emissão virtual de cambiais.

3.1. ASSINATURA DOS TÍTULOS DE CRÉDITO VIRTUAIS

Antes de adentrar exatamente na validade dos títulos de crédito virtuais, temos que abordar a forma como os mesmos serão firmados, dado que, uma vez que serão emitidos de forma digital, não poderão conter a firma de próprio punho do emitente.

Neste sentido, a solução amplamente aceita e, inclusive, já normatizada é a utilização da assinatura digital, a qual é feita através do certificado digital. Esta é uma espécie de “carteira de identidade” que agrega-se ao documento eletrônico, atestando quem o produziu.

De forma suscinta:

“Assim, assinatura digital é o resultado do emprego do sistema criptográfico de chaves públicas, gerando um conjunto de bits, dependendo do sistema empregado, pode constituir um arquivo em separado ou ser integrante do próprio corpo do documento eletrônico, um inter-relacionado ao documento, se este sofrer qualquer alteração a assinatura será invalidada. A chave para seu uso pessoal é confidencial (privada), a outra é de conhecimento público. A chave privada codifica os dados, gerando a assinatura digital e a pública serve para decodificar os mesmos dados, a assinatura só pode ser conferida pela chave pública correspondente, a decodificação é feita exclusivamente pelas autoridades certificadoras.”

Ora, a assinatura de próprio punho, nada mais é que a garantia de que o signatário produziu e concorda com o conteúdo do documento assinado. Sendo assim, uma vez que a assinatura digital ou certificado digital permitem essa mesma garantia para os documentos eletrônicos, parece-nos lógico entender que o documento que possua esta assinatura terá a mesma validade de um documento firmado em papel.

Neste sentido o ordenamento jurídico brasileiro, desde o advento da Medida Provisória 2.200-2 já estende aos documentos assinados digitalmente a mesma validade jurídica que os assinados em papel.

Vale ressaltar que essa Medida Provisória também regulamentou o uso dos certificados digitais, criando a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil). Esta regulamentação visa dar segurança e garantir a validade dos documentos assinados em forma eletrônica.

A infraestrutura é dividida em Autoridade Certificadora Raiz, que é a que credencia os demais participantes da cadeia e audita e fiscaliza as atividades destas, as Autoridades Certificadoras, que são as que expedem os certificados digitais e mantêm os registros dos mesmos, sendo também responsáveis pela revogação dos mesmos, e as Autoridades de Registro, que são vinculadas a uma Certificadora e fazem a entrega do certificado ao usuário, mediante identificação deste.

Vemos assim que a legislação criou uma estrutura complexa com o fito de dar respaldo ao uso dos documentos eletrônicos, dado que esta é uma realidade inegável. Até por isso, o artigo da Medida Provisória foi claro em estabelecer que os documentos assinados digitalmente terão a mesma validade dos físicos.

Em sendo assim, partindo do pressuposto já concluído no capítulo anterior de que o título de crédito virtual é um documento válido e aceito, se este estiver assinado digitalmente, teremos uma cártula perfeita, desde que atendidos os demais requisitos legais de saque da cambial.

Muitos levantarão a questão da possibilidade de fraude no certificado digital, bem como de adulteração do arquivo após a assinatura; porém esses questionamentos não merecem guarida, como veremos.

Com relação à fraude do certificado, não obstante a mesma ser possível, será muito difícil, pois as Autoridades Certificadoras que validam as assinaturas, sendo assim para que a fraude tenha algum valor deverá invadir os registros de uma Certificadora, o qual é extremamente protegido pela tecnologia mais avançada disponível.

Ainda assim, existe a possibilidade de fraude, porém essa será tão remota que até trará mais segurança à atividade econômica, visto que qualquer um pode fraudar uma assinatura física e existem falsários que o podem fazer com um nível de semelhança que pode enganar um perito. Já a fraude ao certificado digital está mais restrita e, à medida que essas fraudes forem acontecendo, novos mecanismos de proteção serão instalados para coibi-las.

Certamente, dado que não vivemos num mundo perfeito, os títulos de crédito virtual darão aso a ilícitos, mas uma vez demonstrado que suas bases são seguras e que, na maioria dos casos, as fraudes serão facilmente expostas, parece-nos que a alternativa é viável.

Por outro lado, quanto à possibilidade de adulteração posterior do documento assinado eletronicamente, esta não preocupa, pois dada a criptografia inserida pelo certificado digital, quando o documento sofre qualquer alteração, esta o inviabiliza, tornando-o ilegível e mesmo incompreensível.

3.2. VALIDADE DOS TÍTULOS DE CRÉDITO VIRTUAIS

Os títulos de crédito típicos mais utilizados, tais como o cheque, duplicata, nota promissória e letra de câmbio estão regulados por leis especiais, contando estas leis já com certa longevidade que as impossibilitou de abordar o tema da emissão digital dos títulos.

Neste espeque, não encontramos na legislação extravagante, até o momento, previsão quanto à validade da emissão de cártulas virtuais. Por outro lado, tais legislações não a proíbem.

O Código Civil de 2002, em notável evolução legislativa previu e aceitou a possibilidade de emissão de títulos de crédito virtuais, desde que os mesmos sejam feitos na forma nominativa.

Assim restou aprovado o texto legislativo do § 3º do artigo 889 do Código Civil: O título poderá ser emitido a partir dos caracteres criados em computador ou meio técnico equivalente e que constem da escrituração do emitente, observados os requisitos mínimos previstos neste artigo.

Vemos assim que o Código autoriza, expressamente, a emissão das cambiais digitais, desde que cumpridos os requisitos legais.

Neste espeque, não temos dúvida quanto à possibilidade de emissão destes títulos eletrônicos, no que pertine às cambiais não reguladas por lei especial e dos títulos de crédito atípicos.

Ocorre, contudo, alguma controvérsia quando tratamos da possibilidade de aplicação deste dispositivo aos títulos regidos por lei especial.

Isto porque, conforme consta no artigo 903 do mesmo Código, as disposições deste aplicam-se a todos os títulos de crédito, salvo disposição diversa da lei extravagante. Ora, sendo assim, o Código Civil de 2002 passou a ser a lei supletiva de toda a disciplina cambiária, aplicável em tudo o que não colidir com as normas específicas.

Nesta senda, como já abordamos, dado que as leis especiais não proíbem a emissão de títulos de crédito virtuais e posto que o Código Civil assim autoriza, permitido está o saque destas cambiais digitais.

Necessário ressaltar que este raciocínio baseia-se no princípio da legalidade. Em sendo assim, posto que não está proibida a emissão dos títulos de crédito virtuais, estão os mesmos facultados. Aliás, este mesmo raciocínio foi usado para a duplicata virtual, com aceitação doutrinária e jurisprudencial, pelo mesmo fundamento de ausência de impedimento legal.

Há, entretanto quem seja contra, fundado no preceito de que as leis especiais não poderiam vetar os títulos digitais, pois tais não existiam quando da sua elaboração e por isso seria necessária alteração expressa destas leis.

Ao nosso ver, dado que o direito privado é regido pelo princípio da legalidade, ou seja, aquilo que não está proibido nem obrigado está facultado, entendemos que a disposição do Código Civil autoriza a emissão dos títulos de crédito virtuais mesmo para aquelas cártulas que tenham regramento específico anterior ao Código.

Sendo assim, parece-nos que, com o advento do Código Civil de 2002, os títulos de crédito tomaram uma feição tal que tornou-se possível a emissão destes na forma eletrônica, sem necessidade de novas alterações legislativas ou mesmo adaptações aos princípios já aceitos.

Nesta perspectiva, conseguimos dar feição moderna a este consagrado instituto que pela sua própria evolução chegou a patamar tal que o consagrado jurista Pontes de Miranda assim afirmou:

“O direito cambiário chegou a tão grande harmonia de técnicas e a técnica tão longe levou seu intuito de harmonizar interesses particulares e do público, que o sacrifício de qualquer elemento significa, sempre, erro de justiça”.

Por isto, entendemos, concordando com o referido autor, que é da necessidade da melhor técnica jurídica harmonizar os princípios, características e regras dos títulos de crédito com a nova realidade virtual, para manter a efetividade e sucesso do instituto.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não se deve advogar contra disposição legal expressa, inclusive, a legislação processual caracteriza tal atitude de litigância de má-fé; sendo assim é imperioso acatar a disposição do Código Civil e entender pela existência e validade dos títulos de crédito virtuais.

Vimos que a legislação já acatou a possibilidade de emissão de títulos de crédito a partir de dados de computador, desde que os mesmos sejam feitos na forma nominativa.

Desta forma, dado que a história dos títulos de crédito nos mostra que a função precípua destas cambiais sempre foi possibilitar e facilitar a circulação do crédito, favorecendo a atividade econômica, não poderia este instituto dar as costas à revolução da informática.

Em verdade, parece-nos ser mesmo da natureza dos títulos de crédito participar desta nova etapa da economia.

Por outro lado, dado que a legislação já abarcou a possibilidade de utilização desta nova modalidade de títulos, restou também demonstrado que já existe suporte e técnicas suficientes para dar segurança aos títulos eletrônicos.

Neste sentido, a teoria do documento permite-nos entender os arquivos digitais enquanto documentos na acepção jurídica, facilitando o reconhecimento dos mesmos enquanto existentes no mundo do Direito.

Ainda, a construção jurídica do conceito documental já traz em seu bojo a possibilidade de abarcar novas técnicas de provas e registros de fatos, que serão fundamentais ao desenvolvimento da jurisdição.

Já as assinaturas digitais são instrumentos amplamente utilizados e que têm conferido segurança a transações fiscais e bancárias, permitindo a correta identificação do usuário. Com relação aos títulos de crédito virtuais, vimos que a assinatura digital permite que o emitente seja corretamente identificado, restando inequívoca a autoria do título.

Logicamente, o sistema de certificados digitais não está imune a fraudes, como também nunca estiveram os títulos de crédito em papel, contudo este sistema é, na realidade atual, confiável o suficiente para permitir utilização em larga escala.

Aliás, como já ressaltado, os bancos e o Estado têm utilizado a assinatura digital com boa margem de confiabilidade. Sendo assim, a utilização dos certificados digitais é considerada, atualmente, segura.

Outrossim, ainda existe a possibilidade de criação de entidades de custódia, que ficariam responsáveis por manter os registros dos títulos, seus emitentes e endossos, gerando maior segurança e publicidade aos atos cambiários. Vale ressaltar que esta modalidade tem sido amplamente utilizada no mercado de capitais com muito sucesso, sendo o modelo unânime na maioria dos países desenvolvidos. Esta adoção resolveria por completo a problemática atual da circulação, dado que a técnica atual de certificados digitais não permite a aposição de sucessivas assinaturas e ainda possibilitaria ao devedor saber com rapidez e segurança quem é o seu credor.

Entretanto, como foi bem pontuado, os títulos eletrônicos acarretarão mudanças em alguns institutos do direito cambiário, que terão de adaptar-se a esta nova realidade, porém este sempre é o sinal dos tempos e fugir desta adaptação apenas levaria o instituto à obsolescência.

Neste aspecto, entendemos que a cartularidade deverá se amoldar aos documentos eletrônicos, de forma que não mais a entenderemos como a necessidade de exibição do título original, mas apenas da exibição do arquivo digital com os requisitos necessários, na forma da lei.

Na mesma senda, a literalidade adaptar-se-á, pois alguns atos cambiários poderão ser registrados não mais no título, mas junto à entidade de custódia, que manterá este registro sempre contíguo à cártula eletrônica, porém não mais inscrevendo-o na mesma.

Por isso, nosso entendimento, após esse estudo é de que o ordenamento jurídico brasileiro autoriza a emissão de títulos de crédito virtuais, desde que o documento eletrônico gerado atenda aos requisitos legais da espécie cartular gerada. Nesta mesma esteira, também está permitido o saque dos títulos de crédito regulados por lei especial na forma eletrônica.

Além disso, entendemos que estas cártulas têm plena validade e eficácia, podendo mesmo servir de títulos executivos, quando a lei assim as caracteriza.

 

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integra: ambito-juridico

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